A agonia de uma civilização vista através de um poema épico
Tradução: Helena Azoubel
Revisão: Lauro Eusébio
Como citar
Weil, Simone (1943). A agonia de uma civilização vista através de um poema épico. Tradução de Helena Azoubel, revisão de Lauro Eusébio. revista trapeira: filosofia — economia — cultura, Belo Horizonte, v. 1, 2024.
Quando comparamos epopeias compostas na idade média à Ilíada, sentimos vivamente que as façanhas, os sofrimentos e a morte de alguns guerreiros parecem, no quadro épico, coisas pequenas e frias. Uma civilização inteira, não faz muito tempo em pleno crescimento, acometida de repente pelo golpe mortal da violência das armas, destinada a desaparecer para sempre e representada nas últimas palpitações da agonia, é talvez o único tema grande o suficiente para uma epopeia. É assim na Ilíada; é também assim em um fragmento de epopeia composto na idade média em língua occitana, e que constitui a segunda parte do texto conhecido sob o nome de Chanson de la Croisade contre les Albigeois [Canção da Cruzada Albigense]¹. Toulouse é o seu centro, como Troia é o centro da Ilíada. Certamente, não podemos nem pensar em comparar os dois poemas pela língua, pela versificação, pelo estilo, gênio poético; mas, no poema de Toulouse, o verdadeiro toque épico se faz sentir, e os traços dramáticos não são raros. Composto durante o combate em defesa da cidade ameaçada, antes que o resultado da luta fosse conhecido, essas circunstâncias o privam da maravilhosa poesia que envolve a Ilíada, mas fazem dele um documento de grande valor. A autenticidade do testemunho, que confirma a comparação com outras narrativas contemporâneas, é garantida pela abundância e a minúcia de detalhes, e sobretudo pelo tom, pela mistura de paixão e de imparcialidade que dá o aspecto próprio das grandes obras.
A civilização que constitui o tema do poema não deixou outros traços além dele, alguns cantos de trovadores, alguns raros textos sobre os cátaros² e algumas igrejas maravilhosas. Todo o resto desapareceu. Nós podemos apenas tentar adivinhar o que foi essa civilização que as armas disseminaram, cujas obras as armas destruíram. Com tão poucos dados, não podemos esperar nada além de encontrar ali seu espírito. Por isso, se o poema nos oferece um enquadramento embelezado, ele não é um guia menos interessante, já que é justamente o espírito de uma civilização que se exprime no quadro que oferecem seus poetas. Assim, os versos de Virgílio: «Você, romano, ocupe-se de dominar soberanamente seus povos» permitiriam, por si só, conceber o espírito da civilização romana tão bem quanto uma vasta documentação. Basta que lendo o poema de Toulouse e evocando o que já sabemos sobre esse tempo e sobre Languedoc, façamos um esforço imaginativo e veremos uma imagem do que uma vez foi.
O que impressiona primeiramente nessa narrativa de uma guerra religiosa é que não se trata exatamente de uma questão de religião. Certamente Simon de Montfort e seus bispos falam três ou quatro vezes dos hereges. Em presença do papa, os condes de Toulouse e de Foix são acusados pelos bispos de serem favorecidos, e o conde de Foix se defende. Os partidários de Toulouse e o próprio poeta, a cada vitória, se felicitam por serem protegidos por Deus, por Cristo, o filho da virgem, e pela Santíssima Trindade. Mas buscaríamos em vão qualquer outra alusão a controvérsias religiosas. Não podemos nem explicar esse silêncio em um poema tão vivo, onde palpita toda uma cidade, se não for admitindo que quase não havia dissensos religiosos ali e entre seus defensores. Os desastres que se abateram sobre essa região poderiam ter levado a população tanto a atacar os cátaros por causa de sua mazela e a os perseguirem, quanto a adotar sua doutrina pela raiva contra o invasor, e a observar os católicos como traidores. Aparentemente, nem uma nem outra reação se produziram. E isso é extraordinário.
Se quisermos louvar, culpar ou desculpar os homens da Idade Média, acreditaríamos ainda hoje que a intolerância era uma fatalidade de sua época — como se houvesse fatalidades para os tempos e os lugares. Cada civilização, como cada homem, tem a totalidade das noções morais à sua disposição e pode escolher. Se o pai de São Luís, como conta o poema, acreditou servir a Deus autorizando friamente o massacre de uma cidade inteira depois dela ter sido rendida, é porque ele escolheu isso. Seu neto teve mais tarde que escolher também, e São Luís ele próprio outra vez; ele que via o fogo como um bom meio, para os laicos, de regular suas controvérsias religiosas. Eles poderiam ter escolhido de outra forma, e a prova é que as cidades do Midi, no século XII, escolheram diferentemente. Se a intolerância o fez perder a cabeça, é somente porque as espadas dos que haviam escolhido a intolerância foram vitoriosas. Foi uma decisão puramente militar. Contrariamente a um preconceito bastante disseminado, uma decisão puramente militar pode influir sobre o curso dos pensamentos durante longos séculos, sobre vastos espaços; já que o império da força é grande.
A Europa nunca mais encontrou o mesmo grau de liberdade espiritual perdida por causa dessa guerra. Nos séculos XVIII e XIX, apenas as formas mais grosseiras de força foram eliminadas da luta de ideias. A tolerância então em voga até contribuiu para a formação de partidos cristalizados e substituiu as restrições materiais por barreiras espirituais. Mas o poema de Toulouse nos mostra, pelo silêncio que ele observa a esse respeito, como o Languedoc, no século XII, estava longe de toda luta de ideias. As ideias não entravam em conflito, elas circulavam em um meio de alguma forma contínua. Tal é a atmosfera que convém à inteligência: as ideias não são feitas para lutar. Nem a violência do infortúnio pôde suscitar uma luta de ideias nesse país. Católicos e cátaros, longe de constituir grupos distintos, eram tão bem misturados que o choque de um terror desconhecido não poderia dissociá-los. Mas as armas estrangeiras impuseram a regra e a concepção de liberdade espiritual que pereceu então não ressuscitou mais.
Se há um lugar do globo terrestre em que um tal grau de liberdade pudesse ser precioso e fecundo, é a costa do Mediterrâneo. A quem observa seu mapa, o Mediterrâneo parece destinado a constituir um caldeirão para a mistura das tradições vindas dos países nórdicos e do Oriente. Esse papel ele teve talvez antes mesmo dos tempos históricos, mas o teve plenamente apenas uma vez na história, e resultou em uma civilização da qual o resplendor constitui, ainda hoje, nossa única clareza, a saber: a civilização grega. Esse milagre durou alguns séculos e não se reproduziu mais. Há vinte e dois séculos, as armas romanas mataram a Grécia, e sua dominação atingiu de esterilidade a bacia do Mediterrâneo; a vida espiritual se refugiou então na Síria, na Judéia, e depois na Pérsia. Após a queda do império Romano, as invasões do Norte e do Oriente, trazendo uma vida nova, impediram por algum tempo a formação de uma civilização. Em seguida, a preocupação dominante da ortodoxia religiosa colocou um obstáculo entre as relações espirituais do Ocidente e Oriente. Quando esse problema desapareceu, o Mediterrâneo se tornou simplesmente a rota pela qual as armas e as máquinas da Europa iriam destruir as civilizações e as tradições do Oriente. O destino do Mediterrâneo repousou sobre os joelhos dos deuses. Mas uma vez ao longo desses vinte e dois séculos, uma civilização mediterrânea surgiu, e talvez teria, com o tempo, constituído um segundo milagre, que talvez teria atingido um grau de liberdade espiritual e de fecundidade tão elevado quanto a Grécia antiga, se não a tivessem matado.
Depois do século X, a segurança e a estabilidade se tornaram suficientes para o desenvolvimento de uma civilização. A extraordinária amálgama criada desde a queda do Império Romano poderia, então, dar frutos. Ela não poderia, em nenhum outro lugar, fazê-lo no mesmo grau além da Occitânia, onde o gene mediterrâneo parece ter se concentrado. Os fatores de intolerância constituídos na Itália pela presença do papa e na Espanha pela guerra ininterrupta contra os mouros não tinham equivalentes: as riquezas espirituais ali afluíam de todas as partes sem obstáculos. A marca nórdica é suficientemente visível em uma sociedade sobretudo cavaleiresca; a influência árabe penetrava com facilidade nos países estreitamente ligados a Aragão; um prodígio incompreensível fez com que o gene da Pérsia se enraizasse naquela terra e ali florescesse, ao mesmo tempo em que parecia ter penetrado na China. E isso talvez não seja tudo. Não vemos em Saint-Sernin, em Toulouse, cabeças esculpidas que evocam o Egito? As referências a essa civilização eram tão distantes no tempo como no espaço. Esses homens foram talvez os últimos por quem a antiguidade era ainda coisa viva. Tão pouco saibamos desses cátaros, parece claro que eles foram de alguma maneira os herdeiros do pensamento platônico, das doutrinas iniciáticas e dos mistérios desta civilização pré-romana que abraçava o Mediterrâneo e o Oriente Próximo. E, por acaso ou não, sua doutrina relembra por alguns pontos, ao mesmo tempo que o budismo e ao mesmo tempo que Pitágoras e Platão, a doutrina dos druidas que outrora haviam vivido na mesma terra. Quando eles foram mortos, tudo isso se tornou simples matéria de erudição. Quais frutos uma civilização tão rica de elementos diversos ela carregou; ou teria ela carregado? Nós não sabemos. Nós cortamos a árvore. Mas algumas esculturas podem evocar um mundo de maravilhas, e nada ultrapassa o que sugerem as das igrejas romanas do Midi da França.
O poeta de Toulouse sente bem vivamente o valor espiritual da civilização atacada; ele o evoca continuamente, mas parece impotente para exprimi-lo, e emprega sempre as mesmas palavras: Prix e Parage, às vezes Parage e Merci. Essas palavras, sem equivalentes hoje, designam valores cavalheirescos. E, no entanto, é uma cidade, é Toulouse, que vive no poema, e ela palpita inteiramente nele, sem nenhuma distinção de classes. O conde não faz nada sem consultar a cidade inteira, «li cavalier el borgez a cuminaltatz», e ele não dá ordens, ele demanda seu apoio. Esse apoio, todos o conferem, artesãos, vendedores, cavalheiros, com a mesma devoção feliz e plena. É um membro do Capitólio que faz um sermão diante de Muret, o exército contrário às cruzadas; e o que esses artesãos, esses vendedores, esses cidadãos de uma cidade — não poderíamos aplicá-los o termo «burgueses» — queriam salvar ao preço das suas vidas, era Joie e Parage, era uma civilização cavalheiresca.
Essa região que acolheu uma doutrina tão frequentemente acusada de ser antissocial foi um exemplo incomparável de ordem, de liberdade e de união de classes. A aptidão a combater os modos de vida, tradições diferentes, produziu ali frutos únicos e preciosos para o respeito da sociedade como também do pensamento. Ali se encontrava esse sentimento cívico intenso que animou a Itália da Idade Média. Se encontrava também uma concepção da subordinação semelhante à que T.-E Lawrence encontrou viva na Arábia em 1917, à que, levada talvez pelos mouros, impregnou por séculos a vida espanhola. Essa concepção, que tornou o servo igual ao mestre por uma fidelidade voluntária e o permitiu se ajoelhar, a obedecer, a sofrer os castigos sem nada perder da sua fé, aparece no século XIII no Poema do Cid, assim como nos séculos XVI e XVII no teatro espanhol. Ela cercará a realeza, na Espanha, de uma poesia que nunca teve equivalente na França. Estendida até a subordinação imposta pela violência, ela enobrece até a escravidão, e permite a espanhóis nobres, presos e vendidos como escravos na África, de beijar de joelhos as mãos de seus mestres, sem se abaixar; por dever e não por covardia. A união de um tal espírito com o sentimento cívico, um apego igualmente intenso à liberdade e aos senhores legítimos, é o que talvez não tenhamos visto fora da Occitânia no século XII. É uma civilização da cidade que se preparava sobre essa terra, mas sem o germe funesto dos dissensos que desolaram a Itália; o espírito cavalheiresco oferecia o fator de coesão que o espírito cívico não contém. Igualmente, apesar de alguns conflitos entre senhores, e na ausência de toda centralização, um sentimento comum unia essa região; vemos Marselha, Beaucaire, Avignon, Toulouse, a Gascogne, Aragão, a Catalunha, se unirem espontaneamente contra Simon de Montfort. Mais de dois séculos antes de Joana d’Arc, o sentimento da pátria, uma pátria que, claro, não era a França, foi o motor principal desses homens, e eles tinham memorado uma palavra para designar a pátria: eles a chamavam de linguagem.
Nada é mais comovente no poema do que a passagem onde a cidade livre de Avignon se submete voluntariamente ao conde de Toulouse vencido, desapossado de suas terras, desprovido de recursos, quase reduzido ao suplício. O conde, alertado das intenções de Avignon, se rende; ele encontra os habitantes de joelhos, que o dizem: «Toda Avignon se coloca à vossa senhoria / cada um lhe entrega seu corpo e suas posses». Com lágrimas nos olhos, eles pedem a Cristo o poder e a força de reconhecê-lo em sua sucessão. Eles enumeram os direitos senhorios que eles se engajam dali em diante em absolver. E, depois de terem todos prestado sermão, eles dizem ao conde: «Senhor legítimo e amado / não tenha medo de dar e de gastar / Nós daremos nossos bens e sacrificaremos nossos corpos / Para que você recobra vossa terra ou que nós morramos contigo». O conde, agradecendo-os, os diz que sua linguagem lhes será reconhecedora desta ação. Podemos imaginar, para homens livres, uma maneira mais generosa de um mestre se doar? Essa generosidade dá a ver a que ponto o espírito cavalheiresco havia impregnado toda a população das cidades.
Era bem diferente nos países de onde provinham os vencedores desta guerra, onde não havia união, mas luta entre o espírito feudal e o espírito das cidades. Uma barreira moral ali separava nobres e plebeus. Deveria resultar, uma vez esgotado o poder dos nobres, o que se produziu, a saber o advento de uma classe absolutamente ignorante dos valores cavalheirescos. Um regime onde a obediência se torna coisa comprada ou vendida; os conflitos de classe agudos que acompanham necessariamente uma obediência nua de todo sentimento de dever, obtida unicamente pelos móveis mais baixos. Só pode haver ordem onde o sentimento de uma autoridade legítima permite obedecer sem se rebaixar; é talvez aí o que os homens de Languedoc denominam Parage. Se ele tivesse sido vencedor, quem sabe o destino da Europa não fosse bastante diferente? A nobreza poderia ter então desaparecido sem arrastar o espírito cavalheiresco para o seu desastre, já que na Occitânia os artesãos e comerciantes faziam parte dele. Assim, na nossa época, nós sofremos todos os dias consequências dessa derrota.
A impressão dominante deixada pelo quadro dessas populações, como vemos na Chanson de la Croisade, é a de felicidade. Que golpe deve ter sido para eles o primeiro choque de terror, quando, desde a primeira batalha, a cidade inteira de Béziers foi friamente massacrada! Esse golpe fez com que se curvassem; ele foi infligido justamente com esse fim. Não lhes foi permitido se reerguer disso; atrocidades se sucederam, se produziram efeitos de pânico bastante favoráveis aos agressores. O terror é uma faca de um só gume. Ele tem sempre mais aderência sobre os que pensam conservar sua liberdade e sua felicidade que sobre os que pensam destruí-la ou esmagá-la; a imaginação desses primeiros é bem mais vulnerável; e já que a guerra é, antes de tudo, uma questão de imaginação, existe quase sempre algo de desesperado nas lutas nas quais se lançam os homens livres contra os agressores. As pessoas da Occitânia sofreram derrotas atrás de derrotas: toda a região foi acometida. Se é preciso crer no poeta, Toulouse, tendo prestado sermão a Simon de Montfort, aconselhado pelo conde de Toulouse ele próprio, depois da derrota de Muret, não pensa em violar sua palavra; e sem dúvidas os vencedores poderiam ter se apoiado sobre o espírito de fidelidade que nesses locais acompanha sempre a obediência. Mas eles tratariam as populações conquistadas como inimigas, e esses homens, acostumados a obedecer por dever e nobreza, foram forçados a obedecer por medo e na humilhação.
Quando Simon de Montfort fez os habitantes de Toulouse sentirem que ele os via como inimigos apesar de sua submissão, eles pegaram em armas. Mas eles se dispuseram imediatamente e se submeteram à sua graça, encorajados pelo bispo que prometia protegê-los. Era uma armadilha: os principais habitantes foram acorrentados, agredidos e caçados com uma brutalidade tal que vários morreram. A cidade foi inteiramente desarmada, desprovida de todos os seus bens, dinheiro, tecidos e alimentos, e em parte demolida. Mas, todo laço de fidelidade tendo sido então rompido, bastava que o senhor legítimo adentrasse Toulouse com alguns cavalheiros para que essa população massacrada e sem armas se levantasse. Ela leva sucessivas vitórias sobre um inimigo poderosamente armado e inflado por seus triunfos; uma vez que a coragem, quando procede do desespero, às vezes é eficaz contra um armamento superior. Segundo a palavra de Simon de Montfort, as lebres se voltam agora contra os galgos. Durante um desses combates, uma pedra lançada pela mão de uma mulher mata Simon de Montfort; e depois a cidade ousa se colocar na defensiva contra o filho do rei da França, que chegou com um exército numeroso. O poema termina ali, e sobre um grito de esperança. Mas essa esperança deveria ser percebida apenas em parte. Toulouse escapa da aniquilação total, mas a Occitânia não deveria escapar da conquista; Prix e Parage desapareceriam. Em seguida, o destino desse país teve por bastante tempo algo de trágico. Um século e meio depois, um tio de Charles VI o tratava como país conquistado, com tanta crueldade que quarenta mil homens fugiram de Aragão. Ele teve ainda temores na ocasião das guerras religiosas, das lutas contra Richelieu e foi muitas vezes devastado. A execução do duque de Montmorency, colocado para morrer em Toulouse em meio à viva dor da população, marca a sua submissão definitiva. Mas nesse momento, essa região, desde algum tempo, não tinha mais existência verdadeira; a língua occitana havia desaparecido como língua de uma civilização e o gene desses lugares, mesmo que tenha influído sobre o desenvolvimento da cultura francesa, não encontrou nenhuma expressão própria depois do século XIII.
Nesse caso, como em vários outros, o espírito continua atingido de estupor comparando a riqueza, a complexidade, o valor do que pereceu com os móveis e o mecanismo da destruição. A igreja buscava obter a unidade religiosa; ela colocou em ação a força mais simples, prometendo o perdão dos pecados aos combatentes e o sagrado incondicional aos que cairam. A licença constitui o grande atrativo a todas as lutas armadas; que poderosa excitação deve ser a licença encorajada a esse grau, a impunidade e mesma aprovação garantidas desse mundo e no outro a não importa qual grau de crueldade e de perfídia! Nós vemos, é verdade, neste poema, alguns cavalheiros de cruzadas recusarem crer no sagrado automático que lhes é prometido; mas esses clarões de lucidez eram raros demais para serem perigosos. A natureza do estímulo empregado pelos homens de igreja os obrigava a exercer uma pressão contínua no sentido da maior crueldade; esta pressão excitava a coragem das cruzadas e abatia a das populações. A perfídia autorizada pela Igreja era assim uma arma preciosa. Mas esta guerra não poderia se prolongar se não fosse se tornando uma guerra de conquista. Nós teríamos primeiramente dificuldade para encontrar alguém que consentisse a assumir Carcassone. Enfim, Simon de Montfort, homem então relativamente obscuro e pobre, aceita essa responsabilidade, mas naturalmente pretende ser pago de suas penas por um ganho razoável. Assim a chantagem ao sagrado e o espírito de aquisição de um homem suficientemente ordinário não precisaria de mais nada para destruir o mundo. Pois uma concepção do mundo que vivia nesses lugares foi então destruída para sempre.
Só de olhar para esta terra, mesmo que não conheçamos o seu passado, vemos a marca de uma ferida. As fortificações de Carcassonne, tão visivelmente feitas a partir da norma, as igrejas que são metade romanas e a outra de uma arquitetura gótica visivelmente importada, são espetáculos que dizem bastante. Essa região sofreu com a força. O que foi morto não pode nunca mais ressuscitar. Mas a piedade conservada através da idade, dos anos, permite um dia fazer surgir o equivalente, quando se apresentarem as circunstâncias favoráveis. Nada é mais cruel com o passado do que o lugar comum segundo o qual a força é impotente para destruir os valores espirituais. Em virtude dessa opinião, nós negamos que as civilizações apagadas pela violência das armas tenham existido; podemos fazê-lo sem temer a negação dos mortos. Nós matamos assim uma segunda vez o que já morreu, e nos associamos à crueldade das armas. A piedade manda se apegar aos traços, mesmo raros, de civilizações destruídas, para tentar conceber seu espírito. O espírito da civilização da Occitânia no século XII, tal como nós podemos entrever, responde a aspirações que não desapareceram e que nós não devemos deixar desaparecer, mesmo que não possamos esperar satisfazê-las.
1 Poema manuscrito de 9678 versos, em língua d'oc entre 1208 e 1219. A obra conta eventos ocorridos no Sul da França desde a invasão do condado de Toulouse e de Albi pelas cruzadas, até a morte de Simon de Montfort.
2 Outro nome dado aos albigenses, que aderiam ao catarismo, doutrina herética na Baixa Idade Média. A palavra cátaro vem do grego katharos e significa “puro”. O crescimento do movimento herético é atribuído ao descontentamento com a Igreja Católica a partir do século XI.