Algo do arcaico
nota tradutória a um trecho de Marcel Maus
Como citar
Eusébio, Lauro (2024). Algo do arcaico: nota tradutória a um trecho de Marcel Mauss. revista trapeira: filosofia — economia — cultura, Belo Horizonte, v. 1, 2024.
Entre lanças e barganhas hipotéticas, «homens primitivos» sempre habitaram o campo da economia. Na Economia Rural dos fisiocratas, famílias deles acampavam próximos a um «estado de natureza», confundidos entre precários habitantes do éden e de um passado incivilizado. N’A riqueza das nações, de Smith, o rei desses homens sentava-se frequentemente sobre um trono retórico a atestar as virtudes comparadas da sociedade de mercado. No Tratado de Economia Política de Say, os «primitivos», ao lado de animais, vagavam prodigiosamente ao anoitecer da razão, deixando pegadas a serem desqualificadas pela diurna agência do útil.
Ao longo do tempo, e sobretudo no início do século XX, estas comunidades hipotéticas chocaram-se cada vez mais com outras comunidades de «homens primitivos», dessa vez reais e descritas a fio — trazidas em barcos etnográficos. Às vezes, desse encontro, o que se representava nos argumentos da antropologia econômica era uma épica guerra entre as comunidades hipotéticas e reais, que terminava invariavelmente com corpos hipotéticos ao chão — caso de Malinowski, Thurnwald, Mauss, Polanyi. Outras vezes, o que se representava desse encontro eram festas, em que essas comunidades se reconheciam como irmãs gêmeas separadas apenas pela duvidosa distância diminuta (do atlântico, do pacífico, do mediterrâneo) entre a realidade e sua representação «acurada».
Foi enquanto comentava a um cúmplice essas primeiras incursões que fiz aos momentos iniciais da antropologia econômica — levado pela corrente que me conduzia de Bataille a Mauss e de Mauss a Malinowski — que ele me alertava para o fio que distraidamente traçava: a fertilidade daquelas contribuições intelectuais estava na proposta explícita de superar a visão de formas de vida indígenas como inferiores à racionalidade ocidental. De fato, para a antropologia econômica da primeira metade do século XX, parecia necessário reconhecer: ou a falência do homo oeconomicus como forma explicativa universal dos modos de comportamento e organização social; ou o indígena de além-mar como apenas mais um agente maximizador em condições de escassez diversas. Em todo caso, não seria mais possível descrevê-lo como um ser ausente de frações de humanidade ou de intelecto; ou mesmo em um estado «pré-econômico» da vida social, como era o gosto até o momento.
Mas abandonar a ideia de uma inferioridade das faculdades humanas nem sempre significou abandonar a ideia de qualquer inferioridade. Correntemente, significou assumir a ideia de uma inferioridade histórico-econômica. Se não era mais uma ausência de esclarecimento o que distanciava as economias europeias das economias do kula e do potlatch, era então uma ausência de maturação histórica por parte das segundas. Essas formas econômicas apareciam como ligadas a uma condição de «primitividade» de seus meios econômicos e, por isso, encaradas então como antecedentes para o «desenvolvimento» social e tecnológico que experenciariam invariavelmente em séculos porvir, tal como fantasmagoricamente teria feito certa banda da economia central do globo.
Malinowski e Thurnwald, por exemplo, conquanto defendessem que o homo oeconomicus é um ser histórica e geograficamente localizado — sendo necessário partir então de concepções totalmente novas para realizar uma descrição acurada das economias indígenas com que lidavam (o que Malinowski sugeriu chamar de «economia tribal» em 1921) —, não rejeitaram uma possibilidade de ordenação dessas formas sociais. A palavra-chave dessa ordenação talvez seja «desenvolvimento», usada às vezes como não mais que uma assepsia bem-sucedida do termo «evolução». Exatamente porque as concepções das ciências econômicas teriam sido formuladas sob a «economia desenvolvida» ou porque «nossa forma moderna de raciocínio» não poderia lidar com as sociedades «em níveis primevos do processo acumulativo», não seria possível aplicá-las aos argonautas ou ao «homem natural».
A ideia não era infundada. As diferenças de certas estruturas e instituições eram uma alternativa para explicar as discrepâncias entre as agências do sujeito médio no capitalismo central e em outras comunidades. Sobretudo, a agência utilitária e auto-interessada estava eminentemente ligada à dominância social do mercado e à autonomia de suas razões. Todavia, isso não significa necessariamente ver nas sociedades «arcaicas» formas rudimentares ou primitivas do mercado atual (esse último considerado então uma forma mais «desenvolvida» daquele), mas um mercado de papel deliberadamente outro, marginal, diminuto e diverso, como mais tarde argumentaria Karl Polanyi.
As amplas críticas contemporâneas a esse tipo de formulação, explícita ou implícita, — de que as formas econômicas das sociedades indígenas representam estágios menos desenvolvidos das economias de mercado atuais — são seguramente capazes de explicitar os seus problemas (se não na economia, ao menos na antropologia e na filosofia), subscrevendo-o ainda invariavelmente à lógica de empresas de cunho colonial e imperial. Acredito, porém, que essa ideia, conquanto abominável, não tenha sido usada de maneira homogênea pelos autores que lançaram mão dela. Marcel Mauss, por exemplo, me parece tanto quanto atípico nessa ninhada.
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Mauss é o primeiro a admitir que a forma econômica e arcaica da dádiva, que ele descreveu ao longo do Ensaio sobre a dádiva, não se perdeu redondamente com a ascensão de um modo de vida oposto a ela: o auto-interesse burguês. Opondo-se à hipótese do escambo auto-interessado como início da troca econômica, a dádiva a que ele remetia evidenciava como a troca poderia ter tido outra raiz, partindo não de um ímpeto de adquirir algo de outro, nem mesmo de acumular riquezas, mas de um ímpeto contrário: o de presentar, de dar, de gastar a própria riqueza em detrimento de qualquer acumulação. Esses motivos de ser e agir implicados na dádiva são conhecidos «ainda por numerosas sociedades e classes», dirá ele.
O arcaísmo ali formulado não era então um fator estático, mas de dinamicidade histórica e capacidade adaptativa. Mais que descrever uma forma econômica geográfica e historicamente afastada dos desenvolvimentos mais recentes das economias ocidentais, o que Mauss reconstruía eram os fundamentos de uma função social (também) contemporânea e desconhecedora de fronteiras nacionais — uma função social largamente omitida nas representações da disciplina econômica. Ao fazê-lo, ele evidenciava que esse arcaísmo era um fator absolutamente constitutivo dos nossos modos de vida.
Não é trivial, por isso, que ele tenha sentido a necessidade de afirmar, ao fim do ensaio, que a civilização deveria retornar «a algo do arcaico». Afinal, seria possível que um projeto intelectual desse gênero servisse a afirmar exatamente o oposto: que a forma dominante das relações econômicas atuais, baseada na racionalização objetiva do auto-interesse, fosse de ordem superior; e, portanto, que o arcaísmo da dádiva que subsiste em nós fosse algo a ser expurgado. Ao contrário, as conclusões de moral e de economia de Mauss ao final do Ensaio sobre a dádiva assumiram formas explicitamente propositivas, deixando pouco espaço para dúvidas quanto ao escopo eminentemente político do texto. Ali, me parece, ele denunciava o que há de mais ferino (se delicado) em seu trabalho:
Assim, nós podemos e devemos voltar a algo do arcaico, a algo de elementar; reencontraremos motivos de vida e ação que são conhecidas ainda por numerosas sociedades e classes: a alegria de doar em público; o prazer do dispêndio artístico generoso; da hospitalidade e da festa privada e pública. [...] Que adotemos então como princípio de nossa vida isso que sempre foi e sempre o será: sair de si, doar, livre e obrigatoriamente; não há risco de nos enganarmos.
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Essa tradução que faço do trecho em francês é apenas ligeiramente diferente daquelas feitas nas edições anteriores ao português. Essa ligeira diferença, entretanto, me parece tanto essencial. Quando Mauss escolheu por usar artigos indefinidos, dizendo «à de l’archaïque, a des éléments» ao invés de, simplesmente, «à l’archaïque, à les éléments», quis se utilizar de um artifício de indeterminação. Não se trata, como dão a entender as traduções correntes da UBU (anteriormente da Cosac Naify), de Paulo Neves, e a da EPU, de Mauro W.B de Almeida e Lamberto Puccinelli, de «voltar ao arcaico, ao elementar» ou «ao arcaico, aos elementos», assim, absolutamente. Mas «a algo do arcaico, a algo de elementar», assim, relativamente.
Essa relativização do retorno é, a princípio, dupla: o «arcaico» do qual se fala é ele mesmo relativo, presente e ausente dos nossos modos de vida. E, justamente pela sua contiguidade, retornar a ele não se confunde com advogar por um retorno (impossível, diga-se de passagem) às condições produtivas das sociedades «arcaicas». O que se pretende não é um reencontro com condições produtivas diversas, mas com «motivos de vida e ação» diversos. Mas, desses dois, é possível derivar ainda um terceiro sentido dessa relativização.
Radicalmente diferente dos antropólogos econômicos que defenderam uma instrumentalização da lógica econômica à descrição das comunidades de além-mar, Mauss não simplesmente localizava histórica e geograficamente o homo oeconomicus como um agente do capitalismo central. Ele o localizava historicamente como uma figura futura, ainda em ascensão. Por isso, não simplesmente desnaturalizava a ideia do auto-interesse como o modo do comportamento humano por excelência (argumento dependente de «homens primitivos» maximizadores hipotéticos). Também, ele demonstrava que o que esse artifício econômico descrevia não era um estado atual da civilização, mas antes uma tendência atual dela: «O homo oeconomicus não está atrás, está adiante de nós; assim como o homem da moral e do dever; assim como o homem da ciência e da razão».
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Talvez tenha sido Bataille a levar mais a sério a radicalidade desse tipo de afirmação. É esta provavelmente uma das raízes da ideia de homogeneização social que ele levou a cabo. O homo oeconomicus não é uma forma atual, mas tendencial; não é a forma do comportamento humano que observamos no cotidiano, mas é o «tipo ideal» para o qual ela se direciona, a passos largos e desiludidos. Amplamente, seria enganoso pensar que a economia, enquanto disciplina, tenha se afastado progressivamente das questões morais que a entrelaçavam na origem. Entre utilidade e preferência, normativamente, ela nunca teria deixado de prescrever um futuro oeconomicus ao homo, em que o cálculo objetivo do auto-interesse apareceria como única forma de sua agência — mesmo quando tratava-se de superar uma perspectiva de inferioridade das formas de organização indígenas. Que certos antropólogos econômicos projetassem a maximização econômica de meios aos fins às sociedades «arcaicas», por exemplo, não teria outro sentido senão o de uma prescrição ideal e universal ao comportamento humano. Não teria outro sentido senão um desejo por homogeneidade; pela sujeição geral da experiência e sua diversidade ao que nela existe de comensurável, de útil.
Voltar a algo do arcaico, assim, não aparece como uma operação de pura resistência a essa tendência de homogeneização: não se trata, absolutamente, de voltar ao arcaico, de reafirmar o «arcaico» e suas razões enquanto um «momento histórico» passado ou «estágio» civilizatório em vias de esvaimento para o qual, de todo, prova-se simplesmente de preservar. Voltar a algo do arcaico é mais decisivo, mais umbilical: é destituir o oeconomicus como tendência. No seu lugar, colocar «algo do arcaico», isto é, a sobredeterminação não-homogênea dos motivos sociais e seus meios de realização. Na prática, trata-se de estabelecer como fim social aquilo que não tem finalidade alguma: toda dádiva sem retribuição; todo o inútil além do útil; toda vida além do trabalho; toda floresta além da madeira; todo animal além da carne; todo ouro além do mineral; toda comida além da energia; todo o conhecimento além do instrumental. Enfim, toda a natureza, inclusive a humana, além de objeto.