Como se nomeiam as formas



Alice Mara Serra

Como citar

Serra, Alice Mara (2024). Como se nomeiam as formas. revista trapeira: filosofia — economia — cultura, Belo Horizonte, v. 1, 2024.

No barco que fui visitar nessa noite as pessoas sentavam-se em círculo. Sempre que o barco balançava, porque oceano parcialmente se agitava, a cada vez as pessoas se moviam, algumas permutavam seus lugares, outras eram a condição para que a permuta ocorresse, porque se todos se levantassem ao mesmo tempo corria-se o risco de afundamento. No meio dessa tentativa de círculo, a cada vez alterado, havia uma vela enorme, eu sem saber por que razão ela não se apagava: não somente pelo vento que insistia, mas pelo vento que trazia anúncios do deserto e da chuva, ambos ao mesmo tempo. Coliã segurava a corrente, estava nessa função há onze meses e seria sucedido por seu irmão quando este completasse dez anos e doze dias. Perguntei por que esses números entre dez e doze, mas Coliã não me olhava mais. Estava atento à corrente, se ele a soltasse, isso eu também não soube ao certo, ou seja, o que aconteceria. Pois a corrente aparentemente não se ligava à âncora, à vela ao centro, ao mastro, à vela do barco, nada disso. Ela apenas se prendia num pequeno corrimão à esquerda, Coliã segurava essa corrente de uns cinquenta centímetros, apenas isso. Segurava-a em pé, e também dormia nesse lugar, somente durante as refeições e seu banho diário um pássaro o substituía nessa função. Era uma espécie de falcão raro, vinha pontualmente três vezes ao dia. Falcão prendia a corrente com o bico e permanecia imóvel nessa função, como se se deixasse fotografar, intacto. Supus que a pequena corrente fosse de metal precioso, o que permitiria entender essa importante função de Coliã e Falcão, mas sua cor verde descartava essa possibilidade. Por fim, supus haver alguma ligação, embora não nítida, entre a corrente e a vela. Qual das duas? Ambas, a vela ao centro, e a vela da embarcação. E foi isso. 

Coliã foi sucedido por seu irmão onze anos depois, ou seja, o irmão de Coliã se atrasara para assumir a função, que deveria ter sido aos dez anos e doze dias. Devido a esse atraso, a corrente foi argola por argola se afinando, a cera fazia o mesmo, enquanto o fogo central diminuía sua intensidade. O irmão de Coliã, cujo nome não soube, havia se distraído com o fogo, foram anos olhando o fogo. Ninguém contava mais com ele para trocar de lugar no círculo. Ele não atendia à palavra de ninguém. Até que ele não se movia mais. Tentaram tirá-lo de lá, levá-lo até Coliã, mas ele se prendera olhando a vela, efetivamente se colara naquela posição. Coliã foi jogado ao mar após sua morte. Seu irmão não teve o mesmo fim: cento e vinte anos depois encontraram o barco, havia esse menino apenas, que mais parecia um boneco de cera, e olhando-o à primeira vista não se sabia se era de carne e osso ou de cera, imóvel, perene, nenhuma poeira do tempo tirara-lhe o brilho dos olhos. Olhavam o que? Somente vim a saber, nessa noite, que esses olhos olhavam uma vela, que seu irmão se chamava Coliã, terem Coliã e Falcão dividido a tarefa da corrente, e ter esse sobrevivente se esvaído de seu destino, somente vim a saber de tudo isso pois o sonho foi justamente assim. 

Coliã acorrentado talvez pensasse nisso, no mar, ou em algo outro, não se sabe, enquanto segurava a corrente. Em meio a isso, Alberto desperta vagarosamente. Eu queria guardar segredo sobre Coliã, mas Alberto efetivamente se interessa por mar e areia, então selecionei somente as partes do sonho que deixavam de lado Coliã, o irmão de Coliã, a vela, o nome velado. Alberto escutou sem interesse quase tudo, exceto a parte sobre Falcão, fez-me diversas perguntas sobre o tamanho da ave, sua penugem, a cor dos olhos, a curvatura do bico. No início fiquei sem saber o que dizer a Alberto, e ao fim também, então desenhei Falcão e assinalei com o lápis a cor ou nuance de cor que seria em cada pena de Falcão, e nos olhos a cor e as nuances de cor que seriam em cada momento do dia. Assinalei também a mudança de cor de cada penugem ao amanhecer, ao meio-dia, ao entardecer e, como eu ainda tentava visualizar Falcão à noite, tracei essas mudanças de cor ao cair da noite, e depois mais tarde, o modo em que cada parte de cada pena passava aos acinzentados. Nesse ponto da descrição, ao invés de escrever cada cor e nuance de cor, usei a gradação dos lápis B e HB, em diversas séries de traços que inscreviam cada uma das horas da noite. Meu primeiro esboço de Falcão ia ficando menos ou mais nítido em meio a tantos nomes de cor e nuances de cor escritas, e depois esses traços em B e HB faziam sumir os nomes de cores e nuances e também aquele primeiro esboço de Falcão. Alberto não permanecera todo esse tempo em que me dediquei a apresentar-lhe Falcão, naturalmente. Alberto partiu e quando voltou com os croissants para o café da manhã, já era outro dia. 

Eu apenas pensava se teria outro sonho, e se Falcão, intacto, deixando-se fotografar em cada nuance, me encontraria outra vez. Foi nisso que pensei em todo o correr do dia, e se Falcão ainda teria outras cores caso chovesse. Foi então que me lembrei: a vela ao centro do barco trazia anúncios da chuva e Falcão vinha pontualmente apenas três vezes ao dia. Então toda a minha descrição, todo o esboço das cores e nuances de cor de Falcão, quase tudo é uma falácia, Falcão não permanecia com a corrente durante a noite nem o dia inteiro, ou seja, era outro o Falcão perene que eu tentava apreender em cada alteração de cor e que vinha apenas três vezes ao dia. Mas, mesmo não estando lá, no barco e com a corrente, mudaria Falcão de cor certamente, pensei. Porém, terá sido outro, esse Falcão, esse em movimento, em relação àquele outro, Falcão imóvel com a corrente, e será ainda um outro, esse Falcão falacioso, esse que desenhei e inscrevi com cada nuance de cor? Por enquanto não sei mais se esses são apenas um Falcão ou se Falcão desde sempre se cindiu em diversos, de fato não parece haver uma verdadeira continuidade entre Falcão intacto no sonho, Falcão que voaria, Falcão sobre o qual escrevo, Falcão em meu esboço com as cores e as nuances de cor, mais os traços em HB e B tapando as linhas de Falcão. Por que Falcão, se existisse, não protestava sobre essa espécie de perda de identidade ou cisão de si, se acaso existisse? E se ele voltasse no meio do dia, numa das três vezes em que deveria vir substituir Coliã? E se esse sonho se colasse a esse dia, e talvez nisso pensasse Coliã, e se eu não pensasse senão em Falcão, aguardando o momento de sua chegada? Sim, hoje a pensar nisso o dia inteiro, traio essa promessa apenas momentaneamente ao me lembrar que ainda havia um dia e uma noite, antes de saborear os croissants que Alberto nos traria amanhã...

Adeus, Alberto, obrigada por ter estado. Alberto acenou-me com um sorriso, como se não tivesse certeza se era essa uma despedida. Joguei os restos dos croissants para os pássaros. Não eram desses que atravessam oceano, longe demais daqui. Queria ver de novo Falcão, saber se ainda viria, ou se alguém outro viria em seu lugar. Pois seria a lógica: Falcão substitui Coliã, alguém outro substitui Falcão. Ou não há essa lógica, já que da embarcação restara apenas aquele menino sem nome, meio de cera, meio de corpo e sangue. Esqueceu-me esse detalhe: Falcão apenas momentaneamente substituía Coliã, e era esse menino que substituiria Coliã. Mas esse menino não substituiu Coliã em sua função, ele se desviou de seu destino olhando a vela. 

Olhando-se? Por que perguntas isso? Agora queres chamar-lhe Narciso. Mas não: ele olhava a vela, aquele menino, ou se tornara a vela, e não me disseram seu nome. 

Sem nome, tu disseste, e sem título. Assim começamos a escrever desde hoje, você desde antes, eu desde ainda antes. Mas pensei que até então eu podia me disfarçar para ti. Escrevi meu nome meio às pressas naquele formulário com receio de que reconhecessem minha falsa assinatura. Senti que faltavam janelas naquela sala. Você não se importava, consertava seus óculos uma e outra vez, uma e outra vez olhava a mesma página do livro, fazia isso num movimento habitual antes de retirar de vez aqueles óculos e não conseguir se desconcentrar disso. Perguntei-me em silêncio se nos veríamos de novo, não sei como me escutaste e repetiu-me: nos veremos de novo? Ficou essa pergunta, uma meia-música, um peixe que quase pula fora do aquário, mas pressente a falta de ar, pensa que ar é água e que a flor que sonha é terra. E que fora do aquário plantas morrem de sede ou às vezes se afogam. E que a terra consome e renasce em formas de gente. Ele, o peixe, pensa tudo isso talvez. E nada disso é antropomorfismo, contestei antes que me imputasses isso. Na verdade, ele, o peixe, temia Falcão mais que tudo, mas ao menos reivindicava isso: Peixe, nome em maiúscula, já que assim o concedemos a Falcão. Olhamo-nos, agora tinham ambos um nome, aliás o mesmo nome da espécie. Se bem que peixe é universal mais abrangente que falcão, diferença que se apaga ao dotarmos ambos de maiúsculas. Estamos então apagando as diferenças ou conservando-as, se os nomeamos Peixe e Falcão? Mas agora esse menino sem nome, esse menino que restou acaba de entrar na história como quem a escreve comigo, reivindicando aqui um nós que eu ainda não conhecia. Mentira. Uma e outra vez você havia escrito em forma de nós, disse-me ele. Sim, mas eu não supunha você, menino sem nome. Não sei ao certo por quem eu supunha, não sei ao certo por quem ou por que supõem os nomes. E como se nomeiam as formas.