Do informe ao que resta de uma formalização
Como citar
Anglada, Carolina (2024). Do informe ao que resta de uma formalização. revista trapeira: filosofia — economia — cultura, Belo Horizonte, v. 1, 2024.
1. A negação
Em 1936, Jacques Lacan começou a sua iniciação à filosofia hegeliana, encontrando-se com outros jovens pensadores como Georges Bataille, Maurice Merleau-Ponty, Raymond Queneau e Pierre Klossowski, que também frequentavam os seminários do russo Alexandre Kojève sobre a Fenomenologia do espírito, realizados entre 1933 e 1939, na capital francesa. A retomada de um pensamento dialético — ou, ao menos, da negatividade, que Giorgio Agamben, por exemplo, levou a cabo, a partir desses seminários —, mudou, de fato, o tom do discurso filosófico nas primeiras décadas do século XX na França. Muito dessa mudança se deve, decerto, à interpretação de Kojève da dialética do senhor e do escravo, a centralizar a rivalidade nas relações entre os homens e também na relação do sujeito com o seu desejo ou com aquilo que produz. O que, no original, mantém-se principalmente na ordem do espírito, desloca-se para o concreto, o material e o formal; «a Fenomenologia é uma antropologia filosófica. Seu tema é o homem como humano, o Ser real na história» (Kojève 1947: 37).
Muitos foram, portanto, os efeitos desses cursos onde o Hegel que ficou foi já esse traduzido, caracterizado pelo caráter fundamentalmente antagônico das ações ou de um antagonismo entre potência e ato. Não só no que pensaram, por exemplo, Lacan e Bataille, ao longo dessa primeira metade do século XX, como também no que publicaram posteriormente, nota-se a insistência de uma resposta ao que fora escutado nesses seminários. No trecho abaixo, transcrito de uma das aulas de Kojève, reconhece-se facilmente de onde parte Lacan para sua definição de imaginário, na década de 1950, na qual tem lugar o desejo como desejo do outro e a lógica intersubjetiva do reconhecimento:
Sem essa luta de morte por puro prestígio nunca teria havido seres humanos na Terra. De fato, o Ser humano só se constitui em função de um desejo que busca outro desejo, isto é, no final das contas, de um desejo de reconhecimento. O Ser humano só se pode constituir se pelo menos dois desses desejos se confrontam. [...] Somente nessa e por essa luta a realidade humana se engendra, se constitui, se realiza e se revela a si própria e aos outros. (Kojève 1947: 14)
Kojève, desde o primeiro momento, enfatiza que, nessas idas e vindas constitutivas da dialética, o que se sobressai na relação entre o eu e o outro não é exatamente a razão, o entendimento, a conciliação. A referência à luta e, em outros pontos, ao sangue, à loucura e ao terror, predomina, e acaba, por essa mesma razão, a conquistar os filósofos já insatisfeitos com o idealismo. A cena imaginada já não é mais de um sujeito e um objeto, e, sim, de dois sujeitos. Assim, seguindo essa linha de interpretação da dialética hegeliana, se o desejo é desejo de reconhecimento, se o sujeito não deseja um objeto, mas o desejo do desejo do outro, aqueles que se encontram em luta não podem morrer, nem mesmo um, dado que um morto não pode reconhecer ninguém. A morte não assegura nada. Só o desejo é que pode fazer surgir a humanidade — o espaço da negatividade por excelência, da negação do dado, negação de si mesmo. Portanto, os que se encontram nessa situação devem agir de modos diferentes.
Um, sem ter sido a isso predestinado, deve ter medo do outro, deve ceder, deve recusar-se a aceitar a vida em nome da satisfação de seu desejo de reconhecimento. [...] Deve abandonar seu desejo e satisfazer o desejo do outro: deve reconhecê-lo sem ser reconhecido por ele. Ora, reconhecê-lo assim é reconhecê-lo como senhor (e fazer-se reconhecer) como escravo do senhor. (Kojève 1947/ 15)
Sabemos bem como a dialética do senhor e do escravo foi lida e relida criticamente, sendo que, já no fim do século XX, se a dialética persistiu, certamente a mediação total ou a reconciliação final ficaram em suspeita. Para se fazer justiça, já Kojève sublinha o paradoxo presente em Hegel de que o senhor é, na verdade, servo de seu desejo de reconhecimento, enquanto aquele que suprimiu a realização de seu desejo é verdadeiramente livre: «a sujeição laboriosa é, pelo contrário, a fonte de todo progresso histórico». (Kojève 1947: 24). Enquanto o senhor está preso à dominação, o escravo, que não escolheu ser escravizado, é muito mais aberto à mudança; «ele é devir-histórico desde a sua origem, em sua essência, em sua própria existência». (1947: 25). Também Slavoj Žižek, importante articulador da dialética na contemporaneidade, percebe isso na tese hegeliana ao concluir: «o manipulador é desde sempre manipulado» (1988: 91).
Aqui, objetivamos retomar essa dialética, de modo a perscrutar, em dois pensadores, Jacques Lacan e Georges Bataille, os efeitos para o pensamento da arte dessa luta entre aquilo que é servil ao reconhecimento e aquilo que é a experiência de uma supressão laboriosa, de um outro exercício de negação. «Afirmar que o Ser é dialético equivale a dizer primeiro (no plano ontológico) que ele é uma totalidade que implica identidade e negatividade». (Kojève 1947: 493). Para além de um elogio ao trabalho centrado na figura do escravizado, importa-nos perscrutar um desses sentidos da negatividade dialética, a sublimação comentada por Kojève: «ao trabalhar, ele [o escravo] se transcende; ou, se preferirem, ele se educa, cultiva, sublima seus instintos ao reprimi-los [...]. Ele adia a destruição da coisa [...]» (1947: 27). A passagem mediante o labor é entre um mundo natural, onde tem lugar o mesmo, e um mundo histórico, definido pela sublimação, pela repressão, pelo adiamento — formas de produzir, entre outras coisas, um novo mundo. Esta diferença em relação ao que há, ao idêntico, ao mesmo, é onde se localiza a liberdade: «A liberdade do homem é a negação efetiva que ele faz de sua própria natureza dada, isto é, de suas possibilidades, que já realizou, que determinam suas impossibilidades, isto é, tudo o que é incompatível com elas» (Kojève 1947: 487). Isso nos parece fundamental, quando se associa o homem livre àquele que pode ser diferente do que é, ou seja, àquele que vivencia as suas possibilidades, a sua potência. Apesar da leitura kojeviana centrar-se na ação, na atividade, garante-se, ainda, uma importância às possibilidades:
Só por ser infinito potencialmente, e sempre limitado em ato pela morte, é que o homem é um indivíduo livre que tem uma história e que pode livremente criar para si um lugar na história, em vez de contentar-se, como o animal e a coisa, em ocupar passivamente um lugar natural no cosmo dado, determinado pela estrutura deste último. (Kojève 1947: 487).
No curso de 1934-35, Kojève é direto: «Para Hegel, o homem não é apenas o que ele é, mas o que pode ser, ao negar o que é» (1947: 61). Essa negação, como dissemos, vem do trabalho, primeiro dedicado à negação da realidade inata (animal) do homem, posteriormente, à socialização de sua obra. As possibilidades dadas ao homem, portanto, não dizem respeito a uma escolha entre duas ou mais alternatividades: possível é negar o dado. Como nesse ponto, muitos são os movimentos realizados por Kojève em torno do que seria a circularidade hegeliana — o que será, mais adiante, motivo de recusa por parte de Bataille. Circularidade temporal, circularidade do saber na figura do saber absoluto, circularidade na própria dialética — formas da tautologia. Já na leitura que faz Žižek desse aspecto em Hegel, de seu «círculo dos círculos» (1988: 14), é por meio do movimento da pulsão que se torna possível evitar que se caia em qualquer ideia de totalidade. A ideia de liberdade comparece, inclusive, para des-totalizar esse movimento arredondado, dado que, em sua visão, essa não se garante pelo trabalho, na exteriorização do sujeito no produto de seu agir. Mediante o que seria uma «astúcia da razão», a liberdade, ou a desalienação, só se realiza a posteriori, isto é, não há como ser livre colocando como único alvo a liberdade.
A ‹astúcia da razão› vem sempre na posterioridade, só é apreensível retroativamente, quando o sujeito percebe que o verdadeiro alcance de seu ato difere do objetivo visado. É impossível compreender, a priori, no ato, o conhecimento de sua importância, de sua significação; o ato é sempre essencialmente malogrado, implica um equívoco fundamental: só se pode agir às cegas. [...] a própria importância, a ‹verdadeira significação› de um ato, na medida em que difere do objetivo visado, só se constitui na posteridade, pelo fiasco desse ato. (1988: 92)
A pulsão tem alvo e meta; enquanto visa esse retorno em circuito, a satisfação em poder circular o seu objetivo, evita atingir a meta para não obstruir ou dar fim ao movimento. Trazê-la para o campo da dialética é, portanto, perceber que o ato implica o impasse da pulsão. E que o eu é dividido. Estão em jogo, no excerto acima, duas visões do agir dialético em Hegel: uma primeira, em que se atinge o objetivo visado e a circularidade se realiza sem desvio ou furo; e uma segunda, trágica, mais afim à interpretação lacaniana, onde a satisfação não advém da realização da meta. Seguindo esse raciocínio, todo ato, consequentemente, seria falho, por só conseguir constituir o seu objetivo retroativamente. Toda representação, portanto, teria que lidar com a impossibilidade do próprio objeto (como também do próprio sujeito) de se constituir a priori. A negação assume-se negatividade, e o que era da ordem do irreparável toma-se como constitutivo, ainda que às custas de permanecer excluído na posteridade.
Porém, antes de aprofundarmos essa veia hegeliana de Lacan e dos efeitos mais específicos que essa leitura de Hegel legou à psicanálise, tratemos do percurso, o qual traçaremos ensaisticamente, tentando vislumbrar como desse círculo dialético e servil passamos às formas sem reconhecimento, informes, que não se assemelham a nada, para depois alcançarmos o que resta, no furo e no buraco, disso que, ainda que indiferentemente, nos intimida e se impõe. A obra de Bataille, nesse sentido, é marcada inicialmente por uma hostilidade dialética, de modo que a contradição quando aparece não só não deságua em um fechamento ou síntese, como também é movida pelo que não tem relação. Por isso, nos centraremos em descrever como está em jogo, de toda forma, uma espécie de existência negativa que se recusa a ser conduzida para a superação. Nas palavras do filósofo, já embebido de um nietzschianismo particular, uma negatividade sem emprego. Um falar para nada, do ponto mesmo de extinção da linguagem, quando as palavras são sacrificadas e perdem a utilidade. Diz-nos Bataille: «O complemento do círculo era para Hegel o complemento do homem. O homem completo era para ele necessariamente ‹trabalho›: ele podia sê-lo, ele, Hegel, sendo ‹saber›. Pois o saber ‹trabalha›, o que não fazem nem a poesia, nem o riso, nem o êxtase» (1943: 150). Poesia, riso e êxtase sobressaem como exceção justamente porque seriam modos de inoperatividade, experiências nas quais o trabalho se suspende, ainda que parcialmente, e conduzem o homem para fora do círculo. O que ele encontra são exemplos sem contrapartida referencial, seja de ordem imagética ou de ordem linguística.
Lacan, ouvinte assíduo dos seminários de Kojève, de 1934 a 1937, incorporou, como vimos, a insatisfação do desejo, ao ouvir do professor sobre a aventura do homem histórico enquanto sujeito nadificador, caracterizando, então, por diferentes exercícios de negação, como o trabalho e a luta. Juntos, escreveriam um texto intitulado «Hegel e Freud: ensaio de uma confrontação interpretativa», que, fora as quinze páginas de fato escritas pelo filósofo russo, permaneceu inacabado. Mesmo sem esse projeto compartilhado, a proximidade entre os dois é grande, mesmo se negada: a experiência de análise, enquanto trabalho de uma dialética da consciência de si torna impossível uma integração completa à positividade normativa. Também em outros pontos de sua obra, quando, por exemplo, refere-se ao encadeamento simbólico ou à pulsão de morte, haverá sempre algo que não tem relação, uma certa inércia que impede a dialetização fechada ou a formalização plena, e que dá a pensar a própria noção de resto. Pela preocupação, em certo sentido, contrária a de Bataille, em empregar-se no ensino, ou seja, na formalização de um saber, Lacan precisou lidar com diferentes tipos de escrita como a topologia, fazendo uso de formas circulares, cilindros, cones e escritas matemáticas. Entretanto, nunca deixou de salientar que mesmo essa linguagem não evitava completamente o equívoco, chegando, afinal, a valer-se também da noção de furo e de buraco. Nesse momento, nos deteremos nas implicações de avançar com o furo e com o que fura, tanto na dimensão subjetiva quanto nos desdobramentos para a arte.
Se Bataille nunca se referiu a Lacan em sua obra, sabe-se, entretanto, por biógrafos como Elizabeth Roudinesco, que o psicanalista nunca deixou de acompanhar os projetos batailleanos, como o da Acéphale, além de encontrarem-se em reuniões das quais nasceu o Collège de Sociologie. Fora esses dados biográficos, é a própria Roudinesco quem aponta que Lacan, mais do que ler Sade com as lentes nietzschianas oferecidas por Bataille, «tomou emprestadas de Bataille suas reflexões sobre o impossível sobre a heterologia, de onde extraiu o conceito de real concebido como ‹resto›, e depois como ‹impossível›» (Roudinesco 1993: 150) — o que veremos adiante. Importa-nos compreender, daí, duas maneiras distintas de levar a cabo uma interpretação da negação e da dialética nas quais o excesso, o nada ou o dispêndio se acrescentam à linguagem ou conformam-na. Trata-se de uma tentativa de aproximação de projetos que, a seus modos, renunciaram em parte à forma, deslocando-a ou para o informe ou para os processos de formalização (e seus restos). A linguagem com que ainda se escreve certamente terá que ver com essas opções.
2. Bataille
Segundo Queneau, Georges Bataille se interessava pelas aulas de Kojève, e dormia enquanto escutava o professor. Há, decerto, alguma afinidade entre essa imagem e a da «formação filosófica lacunar» (Rella 2007: 95) daquele que recusou os departamentos de filosofia e investiu no não-saber, ciente de que todo conhecimento é dependente de restos, lacunas, síncopes, vertigens. Mas gosto particularmente dessa cena na qual se responde ao interesse com a sonolência, em que a atividade do trabalho passa ao onírico. Assim, a afirmação de um desejo confunde-se com a passividade, com a sua aparente negação. Talvez o sono, aqui, prefigure como excesso, dispêndio, afinando-se com a economia geral batailleana, desenvolvida anos antes dos seminários de Kojève, na qual se sente os ecos do estudo de Marcel Mauss sobre o potlach e toda uma interpretação do «movimento da energia sobre a terra» (Bataille 1933: 38), pautada no excedente, e não no acúmulo ou na reserva. No prefácio à obra A parte maldita, esse lugar originado de forças contraditórios fica mais claro:
meu trabalho tendia antes de tudo a aumentar a soma dos recursos humanos, mas seus resultados ensinavam-me que a acumulação era apenas uma dilação, um recuo diante do prazo de expiração inevitável, em que a riqueza acumulada só tem valor no instante. Ao escrever o livro em que eu dizia que a energia no fim das contas só pode ser desperdiçada, eu empregava minha energia, meu tempo, no trabalho [...]. (Bataille 1933: 38)
Como empregar a obra a algo que escoa? Como fazer algo que caminha para desfazer-se? Na leitura que o filósofo faz do etnógrafo, em A noção de dispêndio, a troca é entendida como uma das formas de perda, «de dom sem contrapartida» (Scheibe 2013: 11), o que ressaltaria a maior importância do excesso na figura do objeto cedido do que a conservação, a aquisição ou a produção. Curiosamente, Bataille associa utilidade e prazer comedido, para situar o que estaria para além desses valores. Ao nomear de «perigo de morte» aquilo que constitui «uma forte atração inconsciente» (Bataille 1933: 22), dialoga lateralmente com a noção de pulsão de morte freudiana (a quem o filósofo, de fato, lia), através da qual se observa essa perda mencionada pelo filósofo. Assim, o potlach não se aplicaria apenas à forma da dádiva enquanto perda, mas também à «destruições exemplares de riqueza» (1933: 25), nas quais o desejo de destruição ou a excreção são deslocados para o donatário. «Enquanto jogo, o potlach é o contrário de um princípio de conservação: põe fim à estabilidade das fortunas tal como ela existia no interior da economia totêmica, onde a posse era hereditária» (1933: 26). O sol seria outro catalisador dessa economia das energias, onde predomina o excesso: o astro em questão dá sem nunca receber de volta.
Aí também o que Bataille apreende de Hegel via Kojève, nomeado de «os temas da rivalidade» (1933: 27), têm lugar no pensamento batailleano. Sem já quase não ter lugar no mundo moderno. O diagnóstico é de um déficit ocasionado pela «perda da perda» numa sociedade onde a burguesia só sabe «despender para si, no interior dela mesma» (1933, p. 28, grifo no original), enquanto o cristianismo promove a humilhação às expensas de uma luta real entre classes, reinando a «mesquinharia universal» (1933: 29). A reação do filósofo é apostar, entretanto, cada vez mais na importância do escoamento e na liberação de forças que possam se perder nos fins. Na relevância das partes malditas — forças incondicionadas que não sejam mais condição de nada. Da escrita de um livro que ninguém espera ou que não responde a nenhuma pergunta formulada, Bataille progressivamente caminha para uma não escrita. Aqui, a leitura hegeliana já não se concentra na negatividade da ação, mas provoca a ação que não tem nada mais a fazer, como é descrito em carta a Kojève: «la question se pose alors de savoir si la negativité de qui n’a ‹plus rien à faire› disparaît ou subsist à l’état de ‹negativité› sans emploi’» (1997: 131-2). Um dos deslocamentos fundamentais provocados por essa leitura é do servilismo hegeliano em direção ao dispêndio batailleano, quando se reage ao soberano rindo ou quando não se reage, dado que a própria noção de necessidade é revertida para a lógica do luxo. Ao eterno necessitado faltam sempre recursos. O glorioso consome inutilmente, assim como o astro rei, o sol, «que dispensa a energia — a riqueza — sem contrapartida» (Bataille 1933: 50).
Jean Piel, editor da revista Critique, fundada em 1946 por Bataille, define a busca do filósofo nesses mesmos termos contraditórios: a negação obstinada batailleana conjuga-se com o grande sim que oferecia ao mundo, «sem qualquer reserva ou medida» (Piel in Bataille 1933: 7). A rigor, esta forma de pensar em que a sobrevivência é garantida apenas pelo improdutivo não só remaneja o lugar da negatividade como também requalifica-a, extrapolando os sentidos do trabalho em Hegel, lido por Kojève, e alcançando os fenômenos dos jogos, dos cultos, dos espetáculos, das artes, entre outras tantas formas de negar a coisa e reservar-se ao abandono, ao escoamento, à tormenta: «adquirir consciência do sentido decisivo de um instante em que o crescimento (a aquisição de alguma coisa) se resolverá em dispêndio é exatamente a consciência de si, ou seja, uma consciência que não tem mais nada como objeto» (Bataille 1933: 166, grifos no original).
Se as artes e a religião ainda são formas de objetivação da negatividade, já iniciam o homem na alternância entre o acúmulo e a inutilidade, a defini-lo pela sua dilapidação: «gastamos nossas forças sem medida e, por vezes, na violência da paixão, dilapidamos sem proveito recursos consideráveis» (Bataille 1957: 197). Claro está que o grau do «emprego» distingue tais modalidades: enquanto a arte ainda requer ação, transformação, empenho, o «fazer nada» referido pelo filósofo demandaria, em última instância, uma vontade sem sujeito, uma potência sem ato, uma hesitação sem decisão.
A noção de informe, publicada na Documents, outra revista na qual Bataille esteve envolvido, dá a ver maneiras diferentes de se pensar a parte maldita, o que se impõe como falha ou dejeto em relação a uma norma. Descrita em termos de um verbete, à maneira fragmentária, a entrada já declara, desde o primeiro momento, a importância de um uso desorientado em relação às finalidades: «Um dicionário começaria a partir do momento em que não desse mais o sentido, mas as tarefas das palavras. Assim, informe não é apenas um adjetivo que tem este ou aquele sentido, mas um termo que serve para desclassificar, exigindo geralmente que cada coisa tenha a sua forma» (Bataille 1929-1931: 147, grifo no original). Maldito pode ser lido como mal-dito, dizer mal, meio-dizer, aliando-se a uma prática da palavra desviada da retórica ou da razão e motivada por um caráter negativo, talvez erótico, certamente libidinal da economia.
O filósofo, ao final de seu verbete, declara: «afirmar que o universo não se assemelha a nada e é apenas informe equivale a dizer que o universo é algo como uma aranha ou um escarro» (Bataille 1929-1931: 147). Aqui, o informe promove o esvaziamento das palavras, com vistas a melhor dizer o universo, a fazer uma passagem para o real, a coisas que por elas mesmas não querem dizer nada. O informe é o sem contrapartida; nada nos faz lembrar. Trata-se não propriamente do mundo, e sim do imundo, do que o mundo produz como resto. Outra forma de ver esse acesso ao universo seria pelo que ele deixa de fora, segregado ou disperso; na trama tecida por uma aranha ou na forma de algo expelido, o que tem lugar é justamente as linhas que unem figuras da não-relação. Na teia, os traços podem ser pensados como sustentação do vazio, não como sua obliteração. Esse modo como o universo vem a nós, para Bataille, definirá a precariedade de uma escrita já não mais orientada por sentidos ou necessidades, mas por excessos, tarefas, usos contingentes, interditos. É preciso saber lidar tanto com o nada quanto com o que produzimos de lixo. Isso sem contar na importância de o pensamento levar em consideração precisamente esse movimento de vinda, de chegada, já sempre marcado pela incompletude e pela irrealização. Escrita na qual o corpo só comparece despedaçado, o que, afinal, se confirma ironicamente, numa das primeiras cartas do filósofo à Kojève em que escreve: «Nous reparlerons de votre sympathie pour la tête humaine mais déjà, je crois que vous êtes trop hégélien pour que nous ne puissions pas trouver um moyen de nous entendre» (Bataille 1997: 127).
As outras imagens descritas por Bataille em seus verbetes na Documents, como o do dedão do pé ou o do olho, ampliam o conjunto formado por elementos de aspectos aviltantes ou assustadores, escatológicos, cuja função parece ser anunciar um real capaz de explodir a consistência ontológica do universo. O corpo não é tanto a soma das partes quanto a experiência de sua desintegração. O dicionário já não serve como aquisição de um vocabulário, e sim como a sua perda. Se levamos em conta a proximidade entre essa parte do corpo e o fetiche a ela associado, ainda se coloca a questão do gozo e como esse é sempre descentrado em relação à utilidade, «antes de ser uma felicidade de que seja possível gozar, é tão grande que se compara a seu contrário, ao sofrimento» (Bataille 1957: 43). O erotismo, de modo geral, «é sempre uma dissolução das formas constituídas» (Bataille 1957: 42). Se considerarmos que, em Bataille, a aparência dessa forma constituída não esconde nada por detrás, apenas o nada, sua dissolução terá a ver, portanto, com uma exposição extrema e uma vulnerabilidade. Uma dissolução decorrente dessa volúpia que, necessariamente, terá que ver com a morte, ainda que seja a «pequena morte» ou a ruína de nossos semblantes: «A vida humana não pode seguir sem tremer — sem trapacear — o movimento que a arrasta para a morte» (Bataille 1957: 170).
Por essa razão, a experiência erótica será central por encenar «a busca do impossível e, superficialmente, sempre a de um acordo que depende de condições aleatórias» (Bataille 1957: 43-44). Morrer sem morrer, provar a vida na morte: eis alguns dos oximoros que aliam erotismo e finitude na dimensão de um para além dos limites estabelecidos (lógica ou semanticamente). Enfatizamos, portanto, a importância que o aleatório terá para Bataille, desde seus exemplos que encenam uma aleatoriedade, como «um escarro ou uma aranha», até o modo como juntos montam uma dissolução da ordem da praticidade. Só o que vem por meio de sua desrazão, da falta de sentido, do avesso, da inversão, é que poderá dissolver o já constituído: «A experiência erótica ligada ao real é uma espera do aleatório» (Bataille 1957: 46). Ao mesmo tempo, é esse incalculável que funda a atividade erótica — seja da ordem do interdito, seja da dimensão do acaso, como diferentes formas de se vivenciar o obstáculo.
Ou seja, o impossível é vivenciado em Bataille, na experiência mística ou erótica, na experiência interior ou na escrita, religião e arte. Aí, a Coisa lacaniana ou o objeto a, o que é mais do que é, passa a ser experimentado. Um de seus nomes pode ser «ebulição» ou «elevação do nível da vida» (Bataille 1933: 59). Experimentado sem conclusão. Vivenciado sem expectativa ou esperança. Desesperadamente. O sacrifício de que fala Bataille é aquele que o impede de chegar a termo:
Vocação levada adiante, a todo custo e a todo meio (mesmo não sendo esses os meios nem os custos da filosofia diplomada), através de uma aposta em experimentação crucial de si mesma, num inútil dispêndio de dor (sofrer, sabe-se, não serve para nada), que lhe consente, de fato, de ter todo o tempo de parar antes da fase dialética sintética ou construtiva; ou para hesitar, revoltando-se na negatividade para tentar manter a obra da morte como tal. Bataille tem sede, mas também tem tempo para o sacrifício: nada lhe interessa mesmo do que chegar a uma conclusão (Rella 2007: 58).
Toda a sua obra da negatividade, o «negativo sem emprego» passa a constituir-se nesse momento segundo, anterior ao desfecho, retardando-o, sem pressa alguma. Aliás, é a espera que determina essa condição. Informe seria um dos nomes dessa evitação obstinada do fechamento, pelo excesso do contraditório, capaz até de revelar a falta de sentido desde a origem, indeterminando-a. Outro nome, já mais ligado a um emprego de baixo grau poderia ser «ensaio-martírio», cujo modelo Sartre (apud Rella 2007: 62) entreviu em A experiência interior, exemplar do acordo entre ausência de pressupostos ou fundação e exercício da falência. O efeito, como já vimos, abunda na falta de ligações entre os termos. O verbete-sacrificial também pode ser outro dos nomes dessa experiência que tanto Bataille vivenciou, de descobrir-se traído pela linguagem, surpreendido por uma impotência em dizer as experiências excessivas, levado, então, a silenciar, a inoperar, a descriar. Ainda que a arte ou a escrita coloquem o sujeito nessa aventura de recusa da fixação ou da sintetização, ainda há algo de uma práxis indesejável para a negatividade sem emprego. A faculdade de ir mais além, ao extremo do possível, suprimindo os limites, requer mais astúcia e menos ação, mas o ganho do nada é a possibilidade de não perder a parte maldita.
3. O furo
Podemos ler a obra Lacan como a redescrição da noção de impossível, apreendida aí em articulação com o significante. Não por acaso, Slavoj Žižek encontra na conexão entre a lógica do significante e a dialética a primeira herança hegeliana de Lacan. Nesse momento, é a fala que marca a dimensão intersubjetiva do desejo, marcando ainda a distância entre o real e a sua simbolização, entre o querer dizer e o dito, entre o trauma e o encadeamento lógico-temporal. É justamente do encontro entre a ordem simbólica com o que não pode ser por ela apreendida, que emerge a ideia do impossível ou do não-realizado. Fundamental, portanto, se tornará essa noção de obstáculo intransponível, de impasse incontornável, de impedimento, para a experiência subjetiva. Diz-nos Lacan: «o real é o impossível» (Lacan 1991: 116), «é o que não para de não se escrever» (Lacan 1975: 101). Portanto, não é o que não existe, porque o impossível é o Real. O impossível e o Real, logo, têm a ver com a escrita, ao que Alain Badiou comenta: «o real é o impasse da formalização» (Badiou 2015: 28).
Curiosamente, através de um trabalho cada vez mais acirrado com a noção de pulsão de morte, ou simplesmente, pulsão, é que se notará como esse encontro se repetirá ao longo da vida do sujeito, sendo ele arrastado, ainda, por isso que resta à sombra, como resto ou dispêndio, se quisermos, sempre como impasse. Žižek é sensível às mudanças decorrentes do deslocamento da noção de pulsão no ensino lacaniano, quando vai deixando de representar a morte da coisa e sua realização no simbólico, não se restringindo tampouco ao mecanismo de automatismo da cadeia de significantes, para se identificar com o que em Hegel é a «negação da negação» e em Freud «das Ungeschehenmachen». Trata-se, na perspectiva do esloveno, da principal insistência hegeliana no pensamento de Lacan, quando a pulsão «designa, antes, o momento chave do processo dialético, [...], a inversão da ‹anti-tese› na ‹síntese› [...] a ‹síntese› anula retroativamente a cisão». (Žižek 1988: 80). Aí, nesse «desacontecer o acontecido» (Žižek 1988: 80), ganha cada vez mais terreno a noção de impossível: como podemos ter sido impelidos para frente, por uma espécie de automatismo de repetição, para descobrir que estivemos sempre na verdade?
Assim define Lacan, a partir desse excedente paradoxal que está sempre a deslizar em nossa experiência, furtando-se a ser integrado: «O real só poderia se inscrever por um impasse de formalização» (Lacan 1975: 99). Em resumo, poderíamos afirmar que a condição de impossibilidade é o que passa a ser subjetivado por cada um, e não contornado ou superado. A subjetivação é esse esforço de inclusão do real, da parte maldita, do que é impossível de formalizar — inclusão de um exterior, relação, portanto, com este exercício inevitavelmente falho. O que cabe ao sujeito é bordejar, sabendo que ex-siste, insiste de fora, como limite ao sentido, ao gozo, à verdade, limite real. Limite não necessariamente de uma realidade externa ou exterior à linguagem, mas impossibilidade de um significante que não seja a sua diferença em relação a outros significantes. Estamos falando aqui não só de um limite ex-sistente, como também de um impossível interno, de um significante puro, de uma palavra idêntica a si mesma. Toda experiência subjetiva terá que ver, portanto, com esse parasitismo pelo impossível, interno ou externamente, pelo que é sem lei, sem a priori, incalculável e improvável. O impossível, ressaltamos, como o que se refuta a si mesmo, autorreferente, o que se desintegra ou se converte em seu oposto, sem qualquer explicação.
Interessante como nesse movimento de uso da negatividade, Lacan parece passar da noção de falta à de buraco. Progressivamente o impossível vai deixando de se restringir à superfície e adquire volume, abrindo sulcos, trilhando um caminho de escrita, cavando literalmente a falta até que algo dela faça sensível. Nos seminários dos anos de 1973 e 1974, por exemplo, o psicanalista varia entre o buraco e o furo: «todos sabemos porque todos inventamos um truque para preencher o buraco do Real. Lá onde não há relação sexual, isso produz um buraco que traumatiza (troumatisme)» (Lacan 2018: 144). E mais à frente associa ainda o furo ao real: «o Real se inventa não só onde há um furo senão que não é impensável — que não seja só por esse furo que avançamos em tudo o que inventamos do Real, que não é nada» (Lacan 2018: 144). O que resta toma cada vez mais o lugar de um vazio rodeado por uma estrutura, isto é, adquire a consistência de um ter-lugar. Por isso, em sua topologia, o que tem privilégio, consequentemente, é a borda, o litoral, o contorno desse buraco ou furo do Real pelo simbólico e o seu preenchimento pelo imaginário.
De um lado, a impossibilidade de totalidade fechada, de outro, o ponto mais além, a provocada continuação via disjunção, a diferença do significante para com outros, sua falta de apoio. Até que o buraco, um passo a mais que o simples vazio, é já a positivação ou a subjetivação da falta. Se o impossível não se escreve, dado que a escrita está do lado do real, certamente ele se inscreve, se demarca, ainda que contingencialmente, através do que cessa de não se escrever. É na falta ou na exclusão de um ponto, de um elemento de exceção, que um conjunto qualquer pode se formar, em outras palavras, que algo pode se inscrever, se traçar. Isso posto, podemos dizer que a escrita vai se assemelhando cada vez mais a um equívoco:
O que a linguagem de alguma forma sanciona é o fato de que, em sua formalização, impõe outra coisa que a simples homofonia do dizer. É que é uma letra — e o significante nisto mostra, mostra uma precipitação pela qual o ser falante pode ter acesso ao Real — é na medida em que desde sempre, cada vez foi questão de configurar alguma coisa que de certo modo fosse o encontro do que se emite, do que se emite como queixa, como enunciado de uma verdade, cada vez se trata de tudo o que tem a ver com esse meio-dizer, meio dizer alternado, contrastado, canto alternado do que deixa separado em duas metades o ser falante, é sempre por uma referência à escrita o que na linguagem pode situar o Real. (Lacan 2018: 254, grifo nosso)
Daí depreendemos que a formalização na linguagem deixa restos, assim como também a escrita impossível. Não é porque tais gestos se fazem junto ao vazio, a uma entidade inexistente, que não se pode a ela atribuir propriedades ou dela perceber os efeitos produzidos. Os restos são produzidos pelo buraco, no buraco, em relação a este ponto inconsistente. Na esteira de Freud, que também conservou um ponto que escapa à investigação (umbigo do sonho, pulsão de morte, mito do pai da horda primitiva), Lacan também parece mover-se em torno desse impossível de ser apreendido e que nos obriga a observar as deformações e anamorfoses, os atrasos e os avanços, necessários para bordejá-lo. Toda a linguagem que circunscreve esse ponto, esse furo ou buraco, é também deformada nesse movimento de dar a ele alguma consistência. É por aí que Žižek encontra o verdadeiro hegelianismo de Lacan, quando a reversão dá a ver o fracasso como vitória.
esse jogo de atrasos e ultrapassagens está implicado no processo dialético, não apenas no nível acidental e não essencial, mas absolutamente como seu componente central. O processo dialético assume a forma paradoxal da ultrapassagem/atraso, a forma de um «não ainda» para um «sempre já», de um «cedo demais [...] (Žižek 2005: 52).
Assim, o que resta é bastante; é o ter lugar de um excesso sempre lá; o viver da pulsão sem alvo, por isso, sempre atingindo a meta. O resto e a sobra são a efetividade de um gesto, obviamente não a sua adequação. Žižek nos ajuda a entender que o Saber Absoluto hegeliano, a síntese da dialética entre tese e antítese, não é a totalidade, a identidade, tampouco a unidade. Se isso se mostra importante para ler Lacan, também o é para ler Bataille, considerando que também o filósofo francês teria sido presa dessa leitura apressada da dialética, como notamos na carta escrita por ele a Kojève: «J’imagine que ma vie – ou son avortement, mieux encore, la blessure ouverte qu’est m avie – à elle seule constitue la réfutation du système fermè de Hegel» (Bataille 1992: 132). Hegel seria sinônimo, se assim fosse, de um círculo fechado, rígido, sem furos.
Contudo, para Žižek, tudo está em questão na travessia da fantasia, na «negação da negação» hegeliana, caracterizada pela constatação de que o que se perdeu nunca se teve. Nela, «cada polo passa imediatamente a seu contrário; essa tensão extrema se resolve pela simbolização — a relação dos opostos é colocada como diferencial e os dois polos voltam a se unir, mas com base em sua falta comum» (Žižek, 1991, p. 73). Nos termos com que a dialética ficou conhecida, a lógica é a mesma:
É inteiramente errôneo pensar que a tese contém, em alguma parte de suas profundezas, a antítese, e que, por conseguinte, dela deveríamos deduzi-la; muito pelo contrário, a antítese é o que falta à tese para que esta possa atingir a sua concretização; a tese já é a abstração, já pressupõe sua mediação, só pode funcionar como oposição à antítese. [...] O que Hegel chama «a unidade dos contrários» supera justamente a aparência de tal relação complementar: a posição de um extremo não é simplesmente a negação do outro, mas é, na abstração do outro, esse próprio outro. (Žižek 1988: 73)
Talvez o foco, por isso, não seja apenas o escarro ou a aranha, mas a cisão interna a cada um deles, sua própria negação. Ao menos em Lacan, trata-se, sobretudo, da distância entre o enunciado e a enunciação, entre a tarefa das palavras e o uso, entre algo que vem do vazio e um animal que sustenta esse vazio sem tentar preenchê-lo. O que está em questão, como na dialética, é a restituição de cada um à própria falta e dos dois à falta comum. Haveria, nesse caso, um ponto sempre fora de focalização a arrastar a dialética para a negação. Nessa distância, ou melhor, nessa cesura, algo passa a ser escrito, junto ao impossível, justamente quando as palavras já não têm mais sentido, quando restam como letra ou traço — ou tarefa, diria Bataille. Tarefa de tecer uma teia, posta no lugar de um vazio, a fazer do impasse a sua própria resolução, desfazendo-se em proveito de um real latente.
Efeitos
Dois pensadores de herança hegeliana, ou às voltas com o que fora transmitido em termos de sua dialética, são exemplares de uma mudança cara ao pensamento do século XX: a demarcação da teoria que se realiza sem o intuito da totalização ou numa lógica de falta e de resto. Há, nos dois casos, a constatação de um limite, seja como o que impulsiona a transgressão, no erotismo batailleano, ou o que pensa Lacan a respeito da lei e de seu avesso, que ordena o gozo: Kant com Sade. Esse limite, em nenhum caso, é fixo: a palavra está sempre em falta ou em excesso, a lei pode aparecer como a sua única transgressão, na dinâmica daquilo que a remodela em seu uso. Seja qual for a torção, não há forma de ver o todo ou de concebê-lo. O que se vê é a própria forma, é ela que se toma, com a qual se lida, sem nenhuma crença ingênua de que por trás dela haveria a realidade nela mesma. Os dois são atentos ao fato de que o próprio ato de conhecimento ou de descrição modifica o objeto, performatizando a forma que possui enquanto resultado de um gesto. Tanto o objeto está no olhar quanto o olhar está no objeto, o descritivo revelando-se performativo. «Eis aí a ‹malha temporal› da performatividade do significante, que retroativamente faz da coisa em questão [...] o que ela já era» (Žižek 1988: 33).
O estado é de perene mal-estar para os dois. As respostas esquivam-se de qualquer tom edificante. Ao contrário, ao lê-los, aprofundamo-nos na ausência de um ponto de consistência. E a inconsistência que de vez em quando aparece, muitas vezes na fórmula de um escândalo, não deixa de ser um encontro com o real. Por isso, enquanto Bataille se detinha no que sobra da forma ou no que se recusa assumir um aspecto formal, esquivando-se da correspondência, parecendo nomear-se aleatoriamente, Lacan apreendia o que podia do que disso se relaciona com a sua futura noção de real, e passa também a se interessar pelo que resta do processo impossível de formalização. Pelo que se abre depois de se experimentar o dispêndio, a perda, um cair no vazio. Formar não é o mesmo que formalizar, embora uma devenha da outra. Por nunca ter se despreocupado com o seu ensino, com a transmissão da psicanálise, importava ao psicanalista pensar a teoria e o campo conceitual, constituindo-os em exposição ao corte, à falta, à hiância, à mudança, à ex-sistência, ao impasse, enfim, às inúmeras maneiras de relações dialéticas orientadas em direção ao real. Lacan, nesse sentido, não seria hegeliano apenas em sua teoria do reconhecimento ou ao abordar a lógica da fala, como também ao levar a sério a categoria dialética da forma na qual subentende-se que não há oposição entre aparência e essência, e, sim, uma outra dinâmica onde a forma acaba por se revelar a verdade do conteúdo. Ou, como define Žižek:
todo o erro da consciência consiste em não se aperceber de que o que ela toma por um processo externo ao objeto já é o próprio objeto [...]. a verdade de um momento do processo dialético consiste em sua própria forma, isto é, no processo formal, no caminho por meio do qual a consciência o atinge. (Žižek 1988: 28)
Enquanto Lacan leva a cabo esse processo onde na forma tudo está jogo, forma em aberto, não-toda, Bataille está às voltas com o que desempenha o papel de real nas experiências do êxtase ou da violência. Aí o informe tem lugar ao passar pelo corpo, já que é exemplificado pelo «escarro», por algo que vaza na direção do real, que se inclui para se excluir. Digo vaza justamente para marcar isso que o filósofo descreve como um escorrer ou de um escorregar. Em um comentário direto à dialética hegeliana, o filósofo salienta: «A existência, dessa maneira, fecha o círculo, mas não pode fazê-lo sem incluir a noite de que só sai para nela entrar de novo. [...] o desejo, a poesia, o riso fazem incessantemente a vida escorregar no sentido contrário, indo do conhecido ao desconhecido [...] só o que resta é a agitação circular – que não se esgota no êxtase e recomeça a partir dele» (1943: 150). O real, o impossível, é o que vaza, o que é excluído como abjeto, faz furo; é o assombro da aparência, da consistência, do organismo.
Também Lacan não se engana com a aparência ou com a semelhança, mas em outro sentido: sabe que por trás não há nada. Usamos da aparência para fingir, enganar, usamos-na para esconder o fato de que não há nada a esconder. Lacan, com o impossível referencial, isto é, com a impossibilidade de dizermos àquilo a que supostamente nos referimos, dá bons passos em relação à percepção do nada: «O significante como tal não se refere a nada, a não ser que se refira a um discurso, quer dizer, a um modo de funcionamento, a uma utilização da linguagem como liame» (Lacan 1985: 36). Pela fala ter a ver com o desejo, e o desejo ser sempre de outra coisa, estamos às voltas com uma fala bordejante. Acrescido do fato de que a linguagem é autorreferencial, ou seja, cria o seu referente na medida em que o diz, o movimento em torno desse buraco é um movimento não exatamente fechado, mas elíptico, movido precisamente pelo deslocamento do objeto, um objeto fantasístico, cuja função é nos fazer acreditar que há algo no lugar do nada. Lacan estaria para a sublimação, assim como Bataille para a ebulição.
Bataille, sabemos, é defensor de um baixo materialismo — assim sendo, não se restringe ao simbólico, conduzindo-se quase embriagado a uma realidade material não determinada. No ponto que aqui tratamos, matéria excedente que deve ser perdida sem lucro, cuja ideia viria de Freud: «é de Freud, entre outros —, mais do que de físicos há muito tempo falecidos e cujas concepções estão hora fora de questão —, que é preciso tomar emprestada uma representação da matéria» (Bataille 1929-1931: 81). Lacan, por sua vez, faz uso de um mot-erialism, de um materialismo da palavra e na palavra, que se não lucra, certamente deixa restos — condição de sua proliferação, de seus deslizamentos, ressonâncias, ambiguidades e equívocos — formas de rodeio e de prolongamento do gozo, de transferência, pulsão, atenção flutuante. Formas de êxitos no fiasco que nos é estrutural. Entretanto, esse último se encontra com um mesmo pano de fundo batailleano, aquele da decomposição, que rejeita a referência, a semelhança: «o mundo, o mundo está em decomposição, graças a Deus. O mundo, vemos que ele não mais se aguenta, pois, mesmo no discurso científico, é claro que não há mais o mínimo mundo» (Lacan 1975: 42). Lacan retira o mundo do centro, o centro do mundo, tornando a ambos um todo apenas imaginário. A forma que sobra é o seu segredo mesmo — o real como sem fim.
Referências
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Kojève, Alexandre (1947). Introdução à leitura de Hegel. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, Eduerj, 2002.
Lacan, Jacques (1991). O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Versão brasileira de Ary Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992 (1969-70)
Lacan, Jacques (1975). O Seminário, livro 20: Mais ainda. Versão brasileira de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985 (1972-73).
Lacan, Jacques (2018). O Seminário, livro 21: Os não-tolos erram/ Os nomes do pai. Tradução e organização de Frederico Denez e Gustavo Capobianco Volaco. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018 (1973-74).
Rella, Franco (2007). Georges Bataille, filósofo. Tradução Davi Pessoa Carneiro. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2010.
Roudinesco, Elizabeth (1993). Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1994.
Scheibe, Fernando (2013). Apresentação do tradutor. In: Bataille, Georges. O erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Autêntica Editora, 2013, p. 9-18.
Žižek, Slavoj (1988). O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.
Žižek, Slavoj (2005). Interrogando o real. Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.