«O anjo da história deve ter este aspecto acéfalo»

editorial primeiro



Lauro Eusébio, João Passos

Como citar

Eusébio, Lauro; Passos, João (2024). «O anjo da história deve ter este aspecto acéfalo»: editorial primeiro. revista trapeira: filosofia — economia — cultura, Belo Horizonte, v. 1, 2024.

Angelus acéphale — é como esta revista se chamaria inicialmente, riscando no chão das palavras uma encruzilhada entre Walter Benjamin e Georges Bataille — uma encruzilhada que atravessa a fundo seus editores e pela qual eles atravessam cotidianamente. Foram decisões editoriais e de comunicação que nos afastaram desse primeiro título, apontando para um termo que, longe de abandonar essa encruzilhada, tenta demarcá-la sem instrumentos cimentosos, mas afetuosos. Não é mais com uma pavimentadora que nomeamos esse projeto, mas com a sutileza dos pés em exercício trapeiro, de recolhimento dos documentos rasgados, da hermenêutica fragmentária a qual nos propomos; e para a qual Benjamin e Bataille aparecem barrocamente — ora como faróis, ora como sombras. Eis onde se cruzam as linhas de desejo sob nossos olhos: num esforço de colocar o acéfalo em voo histórico e angelical; num esforço de guilhotinar sacrificialmente o anjo novo. Essa revista é uma amizade.

Trapeira, na língua portuguesa, é simultaneamente uma armadilha de caça e uma janela de vista privilegiada. É também o feminino de trapeiro, o transeunte indistinto de grandes cidades que recolhe os restos, os rasgos dos documentos descartados e/ou ocultados, tudo aquilo que a cidade despreza, tornando-os sua riqueza.

Carolina Maria de Jesus evocava um duplo sentido trapeiro, conjugando uma dicotomia latente, cuja dissolução é das mais caras a nós. De fato, recolhia retalhos cotidianamente. Mas seria um erro reduzir o aspecto cotidiano e entrecortado de seu diário ao mesmo gênero de atividade cotidiana e entrecortada de seu trabalho. Elas eram, a rigor, o oposto: «Amo o luar, detesto o sol», diria Alphonsus de Guimarães. Mas elaborar o lusco-fusco é exatamente o que nos interessa.

Álvaro de Campos tinha febre e escrevia à dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica. Eduardo D’Almeida fala de um filósofo que escrevia à luz de uma candeia de azeite. Camilo Castelo Branco fala de um filósofo de trapeira. Todos e nenhum, somos simultaneamente. Ajudados, inspirados e multiplicados pelas vozes dissonantes do passado, ouvimos aos gritos um sussurrante apelo de salvação e consumação — chamado messiânico e escatológico. 

Bataille e Benjamin não procuraram nos fragmentos da história a simples descrição do passado. Esses rastros mostraram-se a eles, antes, como aberturas ao futuro. O animal político, cujo trabalho conduziu à tendencial homogeneização social, já viveu totalmente alheio a tudo o que hoje lhe aparece como absolutamente natural. Já viveu como se natural fosse tudo ao que, hoje, ele se sente completamente alheio. O processo de luto por essas sociedades, mais que uma melancolia passiva, era então uma operação intelectual ativa, à imagem da Antígona de Sófocles. Lutando pelo funeral honroso dos nossos irmãos (os mesmos fratelli che non sono più de Pasolini), transbordamos o quanto deles apresenta-se em nós; quanto de viço perdura na rememoração de suas formas de vida; o quanto, preferiria Drummond, «caminhamos de banda» por causa deles. Colocamos assim em jogo no luto não a metafísica subjetiva de corpos inanimados, mas a materialidade social de seus espíritos. Rompendo com a forma do tempo linear, ser uma «força do passado» se torna aqui ao mesmo tempo ser «o mais moderno de todos os modernos».

A luta de Antígona é um gesto, não obstante, da ordem da linguagem. A etimologia das palavras é por vezes é ardilosa, mas não nos parece puramente contingencial que algo como a palavra sèma, no grego, signifique tanto túmulo como signo: lutar pela lápide e pelo sepultamento envolve lutar pelo processamento simbólico. Antígona sabia que não é sobre o que não se pode dizer que deve-se calar — como diria o autor do Tractatus: sobre o que não se pode dizer, deve-se fazer. E qualquer um, quer seja uma irmã ou amigo, que lhe disser que isto é impossível, que não se deve tentar, só terá uma invariável resposta: «visto que assim me falas, eu te odiarei»! Mesmo que o resultado último seja vagarmos solitários por este deserto a que chamamos de Real: Soyez réalistes, demandez l'impossible.

Parafraseando e conjugando Benjamin e Bataille, poderíamos dizer que «o anjo da história deve ter esse aspecto acéfalo», onde o verbo «deve» não deve ser entendido como identidade (não é acéfalo o sentido do histórico em nossas instituições); ou como normatividade (o anjo da história não é figura domesticável). Trata-se, na verdade, de um terceiro sentido. De algo da ordem do historicamente necessário. Heidegger notadamente disse que apenas um deus poderia nos salvar — Bonhoeffer acrescentou: apenas um deus que sofre pode nos salvar. Este deus parece ter se esquecido de nós. Mas um anjo descerebrado decisivamente o enluta. A acefalia vive difusa em nosso mundo: vive na Vitória de Samotrácia, vive na mula folclórica que amedronta as crianças brasileiras, vive no dullahan irlandês. Vive em João Batista, profeta cuja cabeça decepada sempre nos é entregue numa bandeja de prata. Vive em Dinis, Ginés de la Jara, Gemolo e Afrodísio, santos cefalóforos. Senão nossa tradição popular oral, não aquela religiosa, mitológica, literária, senão os jacobinos — a quem espanto causa um querubim descerebrado? Quem teme, no fim, a acefalia? Um antigo jargão, destes da realpolitik, continua a insistir que o Estado não pode ficar acéfalo: le roi est mort, vive le roi ! O medo da perda cerebral parece ainda atormentar, ironicamente, os cérebros de nossos estadistas e magistrados. Se os anjos novos talmúdicos eram criados para entoar hinos e logo em seguida se dissolverem no nada, este anjo acéfalo deve ter um tal impulso suicidário similar: seu pensamento é propulsionado pela dissonância e o negativo, sua atividade intelectual vai se desdobrando até chegar ao nível de seu próprio colapso. Se de sua massa encefálica fria e gosmenta se alimenta, fá-lo só para então a regurgitar. Anjo torto, mau, informe. Canibal de si mesmo. Autoantropófago, se quisermos.

Tal como o sussurro e o silêncio estão mais próximos do grito do que da cadência usual da fala, a multiplicidade cefálica é eletivamente afinada com a acefalia. O islã conta que, na ocasião da viagem noturna e da ascensão, o profeta Maomé se deparou com um anjo de setenta cabeças, cada cabeça contendo setenta línguas, cada língua recitando setenta tipos diferentes de tasbihs. Devemos perdoar, conforme o ensinamento crístico, setenta vezes sete: os anjos de Alah entoam hinos em sua glória setecentas vezes mais que isto, simultaneamente. Este anjo surático é como nosso anjo acéfalo da história, são irmãos bivitelinos: mesmo possuindo dezenas de cabeças, mesmo que cada uma delas esteja unida ao mesmo tronco, o grau relativo de autonomia que cada uma possui impede a possibilidade de se rastrear uma cabeça dominante, um centro efetivo do discurso. Ou, melhor, este centro existe e é Allah: o astro solar que irradia luz para todas as criaturas, mas que quando encarado diretamente nos queima as retinas. Não perfeição, dominância, adequação; ao contrário, combustão, rejeito, cegueira. Eis o resultado final da adoração divina.

Hineni (eis-me aqui), atende Abraão ao chamado de Deus, pouco antes de obedecer à ordem de imolação sacrificial de seu filho. Hineni, atende Moisés, antes de partir para o Egito a fim de libertar os hebreus. Hineni, atende também Isaías, pouco antes de abandonar sua terra a fim de insensibilizar, ensurdecer, cegar e tornar imperdoável um povo «até que as cidades desmoronem». Essa abertura radical e incondicional ao outro, quem essa própria atitude transforma em nume — inegável, atormentante, «sou aquele que sou» — implica invariavelmente uma abertura a uma violência desconhecida. Sair de si, partir de si ao outro: um «movimento sem regresso», segundo Levinas. O hineni abraâmico, se é traduzido por uma afirmação espacial — literalmente, «aqui — eu» (hineh - ani) —, não se confunde com a fixidez da presença. Hineni se propõe como um reconhecimento imediatamente inatual, diferido: o eu que o pronuncia é imediatamente outro quando o faz: já afetado, já violentado, já partido; o aqui enunciado, uma inverdade, já que dizê-lo significa aceitar subitamente o deslocamento incondicional em missão. Abraão criou o Deus de Abraão ao dizer hineni; Abraão criou Abraão ao dizer hineni. É uma postura similar aquela implicada ante a presença divina do anjo acéfalo da história.

O vinho é a bebida por excelência dos poetas e dos loucos. Nonnus de Panópolis diz que Ampelus, amante de Dionísio, se metamorfoseou em videira: sua barriga veio a se tornar um longo caule, seus dedos viraram gavinhas, seus pés fincaram raízes na terra, seus cotovelos deram lugar a galhos dobrados cheios de frutas, seus cabelos e pescoço se transformaram, enfim, em cachos de uva. E da drupa crescente do corpo do antigo amante, Dionísio fez o vinho: espremeu as uvas com tanta força que a tez branca de seus dedos foi tingida de um vermelho-roxo nunca antes visto. Estava concluído o néctar inebriante: não somente um líquido, mas a promessa dionisíaca de que Ampelus sempre viveria em cada vinho tomado ou ilibado. Enquanto a vinicultura existir, as águas do Estige não chegarão a Ampelus. 

 A gênese mitológica do vinho possui uma beleza elegante. O doce aroma e a seiva alcoólica do licor são, entre muitas coisas, um gesto de amor, uma convicção afetiva, sempre reatualizada, de que a degradação vinda da morte pode se curvar aos rituais da memória: pode transformar a ociosidade e o lamento do luto — e, porquê não, da vida — numa orgia do fogo, num carnaval de amores ébrios, numa festa que reencanta o mundo. O vinho é também a bebida por excelência dos trapeiros — embora Baudelaire, profano como o era, discorde das origens: o vinho quem fez foi o Homem, num ato de profunda desobediência e revolta à tirania do sono instituída por deus. Pois bem, querido leitor — nos semblables, nos frères — rascunhe essa imagem na sua cabeça: hordas e mais hordas de um povo anônimo e indistinto que, ao clarão da lua no céu noturno, passa suas madrugadas a recolher tudo aquilo que a cidade desprezou: garrafas quebradas, trapos, galhos, rolhas, cigarros, casacos. Tudo aquilo que é resto eles tornam riqueza, tudo aquilo que é inútil eles tornam arquivo, tudo aquilo que é esquecido eles fazem seu patrimônio. Montam uma galeria de sombras, um antimuseu dedicado à escória e ao lixo. E depois de terminado seu ofício, se animam com o vinho, com a percussão dos tambores e a devassidão do sexo. 

Deste espírito fazemos nossa revista: vinosa, pois galvanizada pelo corpo metamorfoseado de nossos amores mortos; trapeira, dedicada a criar platôs que abriguem aquilo — e aqueles — que um dia foram desprezados. 

O apogeu da civilização é uma crise. Luzes, lumières, se apagam e não sabemos se são vagalumes ou impérios. Vivemos como cortesãs entre os esplendores e misérias da modernidade. E recusamos, ainda assim, a iconoclastia das vanguardas. Não prescrevemos disciplinas estéticas a caminhar em ritmo marcial. Caminhamos, ao contrário, no ritmo da flânerie: entre a hipocrisia inconsciente e o consciente desengano. Não há nada de novo no que queremos ou pretendemos fazer. E apenas no balé do arcaísmo encontramos as sete chaves para acessar o contemporâneo: anacronismo comedido, inatualidade, distanciamento. Não-coincidência com o tempo e, justamente por isto, uma clareza — ainda que turva — sobre ele.

Bataille disse, na ocasião da revista Acéphale, estar empreendendo uma guerra ao luminar mundo dos civilizados. Benjamin disse, igualmente, na ocasião da revista Angelus novus, que toda revista deveria «ser implacável no pensamento, imperturbável no que tem para dizer e, ignorando totalmente o público, se assim tiver de ser, orientar-se por aquilo que emerge, como verdadeiramente atual, sob a superfície estéril do novo ou da novidade cuja exploração deve deixar aos jornais». Calcamos nosso caminho partindo de uma fidelidade a estes princípios. Princípios que parecem total ou parcialmente ausentes da maneira como o assim chamado pensamento crítico tem se orientado. Sobretudo no nível da linguagem. Sob pena de não profanar uma suposta cientificidade — este sanctum sanctorum neopositivista —, as possibilidades de escritas dissonantes são castradas em prol de moldes calcificados que mais dificultam do que impulsionam a atividade crítica. Congressos e simpósios sobre os dois — Bataille e Benjamin — são organizados a todo ano, mas parece que deles só sabemos pensar sobre. Não com. Algo tão simples quanto uma preposição altera radicalmente o exercício crítico. Será que algo como as teses Sobre o conceito de história seriam admitidas em nossas revistas nos dia de hoje? Será que algo como A noção de dispêndio seria possível no nosso ritmo marcial de escrita? Ou será que eles novamente seriam acusados — como talvez nós mesmos o sejamos — de místicos, idealistas e nefelibatas? Pensamento crítico envolve forma crítica. Enquanto isto não for assumido como elemento sine qua non de uma experiência radical, seguiremos, como bem estamos, a dar murros em pontas de facas.

Eis, enfim, o sujeito histórico dentro de sua casa de infância. Sem passagem explícita ou justificativa, está também adulto no centro da cidade. Familiares e estrangeiras são as faces dos visitantes, dos transeuntes — arcaicos e modernos. Sim, está sonhando — e nunca antes fez melhor saber.