O anjo pornográfico
recortes para pensar aspectos da arena política brasileira contemporânea
O anjo pornográfico
recortes para pensar aspectos da arena política brasileira contemporânea
Como citar
Azoubel, Roberto (2024). O anjo pornográfico: recortes para pensar aspectos da arena política brasileira contemporânea. revista trapeira: filosofia — economia — cultura, Belo Horizonte, v. 1, 2024.
Durante a quarentena pandêmica paguei algumas dívidas de leitura. Uma delas foi com O anjo pornográfico, a famosa biografia do escritor e jornalista Nelson Rodrigues escrita por Ruy Castro. Carrego grande fascínio pela persona do biografado e o sucesso que o livro alcançou — desde o seu lançamento no já longínquo ano de 1992 (foi o vencedor do prêmio Jabuti na sua categoria no ano seguinte) —, despertou-me ainda mais o interesse sobre o autor de Vestido de Noiva.
Ler O anjo pornográfico com tanto atraso me confirmou um prejuízo que eu já suspeitava acumular, pois a obra tem méritos enormes, que vão desde o primoroso trabalho de pesquisa, passando pelo estilo fluido de Castro, até o cuidado editorial com fotografias raras, um rico índice remissivo, entre outros tantos acertos. No entanto, lê-la nessa distância temporal e, mais destacadamente, naquele momento da vida pública brasileira, trouxe-me algumas conexões (e reflexões) interessantes. É sobre essa relação obra/realidade atual do país que gostaria de comentar neste pequeno ensaio, destacando dois trechos da biografia que me levaram a inferências sobre posturas/práticas políticas dos nossos (supostos) polos ideológicos nos dias que correm
O primeiro excerto do livro que trago aqui é a abertura do capítulo 19, intitulado O tarado de suspensórios, que retrata um pequeno instantâneo da luta do político Carlos Lacerda contra o então presidente Getúlio Vargas. De acordo com Ruy Castro, na sua estratégia anti-getulista, Lacerda precisava primeiro destruir o jornalista Samuel Wainer e o seu Última Hora, jornal em que Nelson Rodrigues trabalhava na ocasião dessa querela. Estando, pois, empregado na empresa de Wainer, as «bordoadas» do udenista sobraram para o tal anjo pornográfico:
«O tarado Nelson Rodrigues!» , gritava Carlos Lacerda pela rádio Globo em 1953. “Um dos instrumentos do plano comunista da Última Hora para destruir a família brasileira!”
Carlos Lacerda citava Marx e Engels, para mostrar o péssimo conceito que os dois filósofos alemães tinham da família, e lia trechos de «A vida como ela é...», para provar que Nelson Rodrigues fazia parte do insidioso movimento comunista internacional. Quem ouvisse Carlos Lacerda falando aquilo pelo rádio, e não conhecesse Nelson, era bem capaz de acreditar. Mas qualquer um que já tivesse trocado duas palavras com ele só podia rir. (Castro 2001: 243)
A passagem nos faz lembrar que a retórica anticomunista já era utilizada no país muito antes da ascensão da força política que ocupou o nosso governo federal em 2018. Mas a semelhança dos discursos nos salta aos olhos. Há um mesmo propósito: ativar uma maquinação ideológica para desqualificar opositores e colocar no debate/espaço público brasileiro temas e convicções extemporâneas, frequentemente centradas no apelo confuso à religião e à moral. «Vai haver uma limpeza como nunca houve antes nesse país. Vou varrer os vermelhos do Brasil. Ou vão embora ou vão para cadeia», vociferou o então candidato Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral em famosa transmissão para a Avenida Paulista em 21 de outubro de 2018 (ou seja, 65 anos após Carlos Lacerda!). Obviamente, o despropósito do presidente é muito maior. Lacerda não foi testemunha da queda do muro de Berlim e nem de toda a derrocada do Leste Europeu que assistimos ao fim do século XX, eventos que desvelaram, definitivamente, um modelo político nada desejável. Diante disso, torna-se inevitável pensarmos o «fantasma do comunismo» como uma desatinada estratégia retórica sem vínculos muito concretos com a nossa realidade nacional (ainda que setores minoritários da esquerda no país insistam na crença em caminhos pouco democráticos e supostamente redentores para a «nossa salvação»).
O segundo trecho está logo adiante, no capítulo vinte e dois da obra, intitulado O sangue em flor. Trata-se de outra citação de terceiros, dessa vez do jornalista e escritor mineiro Paulo Mendes Campos. Na sua crítica à peça de Nelson Os sete gatinhos, que acabara de estrear (era outubro de 1958) no Teatro Carlos Gomes no Rio de Janeiro, P.M.C. escreveu:
O mundo perde sempre um pouco da sua potencialidade trágica quando um preconceito é destituído. Se admitirmos, por hipótese, um mundo mentalmente asséptico, varrido de todos os preconceitos, estejamos certos de que o drama e a tragédia desaparecerão dos palcos. (Castro, 2001, p. 287)
De forma ousada, Paulo Mendes Campos sintetiza nesse excerto o teatro livre e sem concessões de Nelson Rodrigues. Os sete gatinhos narra em sua trama a história de uma família na qual quatro irmãs se deixavam prostituir pelo pai para que a caçula se casasse virgem - uma tragicomédia que expõe as vísceras de uma realidade suburbana brasileira, permeada de preconceitos e contradições. Parafraseando o próprio Nelson, o que ele nos oferece é a vida como ela é...
Ao ler o fragmento de Mendes Campos, podemos facilmente nos lançar à pergunta: como seria hoje a recepção dessa crítica por certa parte da esquerda atual? Mesmo considerando que o leitor, como já nos alertou um teórico alemão, «nunca retirará do texto a certeza explícita de que a sua compreensão é justa» (Iser 1979: 87), desconfio que, muito provavelmente, ela não teria um bom acolhimento. No entanto, o que vemos nas palavras do autor de O Amor acaba não se trata de uma exaltação de ideias que nos remetem à discriminação ou à intolerância. O que elas nos trazem é a valorização do exercício teatral mimético, transferidor, cujo efeito catártico nos oferece antes a possibilidade de enxergarmos nossos valores e sentimentos e, aí sim, nos dando a chance de nos livrarmos dos preconceitos.
Eis dois pequenos recortes, retirados da minha leitura extemporânea d’O anjo pornográfico, que me levaram a aspectos/inferências da arena política brasileira contemporânea. Nessa condução, a admirável biografia me reafirmou aquilo que aprendemos desde cedo, que a literatura sempre nos consente unir a obra do escritor com a realidade do leitor, e este último busca discernir como texto e repertório/experiência (aqui pode ser até mesmo um momento político) se encadeiam — esses são os motores do processo de significação. Um livro nunca é o mesmo, seja a cada releitura ou mesmo em sua primeira e distante leitura atemporal, como no caso descrito aqui. O trabalho de Ruy Castro também me confirmou outra velha lição: «a literatura permite àquele que lê pensar e até organizar/reorganizar a complexidade que é a vida». (Cassiano/Tofalini 2012: 1)
Referências
Cassiano, Luiza de Queiroz; Tofanili, Luiza Aparecida Berloffa (2009). Romance regionalista e denúncia social. In: Paraná. Secretaria de Estado da Educação. Superintendência de Educação. O professor PDE e os desafios da escola pública paranaense. Curitiba: SEED/PR., 2012. V.1. (Cadernos PDE).
Castro, Ruy (1992). O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Iser, Wolfgang (1976) A interação do texto com o leitor. In: A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Hans Robert Jauss et al.; coordenação e tradução de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.