O ensaio como gesto

entrevista com Pedro Eiras



João Passos

Como citar

Passos, João (2024). O ensaio como gesto: entrevista com Pedro Eiras. revista trapeira: filosofia — economia — cultura, Belo Horizonte, v. 1, 2024.

Breve nota autobiográfica

Por volta do mês de fevereiro ou março deste ano, não me recordo com precisão, fui andar um pouco pelas ruas do Porto e entrei pela primeira vez na Casa dos Livros, um fantástico centro de estudos da Universidade do Porto que sempre organiza exposições, rodas de conversa, palestras e atividades dessa natureza. Meu andar não era tão desinteressado quanto possa soar: eu estava em busca da casa de infância da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, por quem nutro um carinho e amor que já atravessa bons anos. A casa da Quinta do Campo Alegre era, para ela, quase mítica: um palácio carmesim como o do minotauro cretense, cheio de espelhos que alargavam o espaço fechado, varandas e pátios internos, objetos de prata brilhante e vidro luzente. Sem falar do enorme jardim com azáleas, rododendros e liquidambares que ela fala em tantos dos seus contos. Era um espaço que estimulava a imaginação. E hoje é o Jardim Botânico do Porto.

Bem ao lado se encontra a Casa dos Livros. Quando entrei estava havendo uma exposição de livros antigos e raros que, é claro, me impressionaram. Me deparei com a primeira edição, de 1679, dos Sermões do Vieira; Viriato tragico, as Obras de Luís de Camões, enfim, todo tipo de obra impressa nos séculos XVI, XVII ou XVIII. Para os bibliófilos e amantes da tipografia é um verdadeiro deleite.

De todo modo, quando já saía da exposição reparei que uma série de livros estavam postos bem em frente à mesa do recepcionista. Descobri, para a minha felicidade, que eram gratuitos e que eu poderia levar quantos quisesse. Mas um especial me chamou a atenção: Platão no rolls-royce: ensaio sobre literatura e técnica. O título magnético — referência a uma passagem de D. H. Lawrence — somado ao debate sobre a técnica — que para um aficionado com Benjamin, como eu, é sempre intrigante —, me cativou de imediato. E quando comecei a folhear o livro fiquei ainda mais impressionado: todo o texto era organizado com símbolos paragrafais — os ésses entrelaçados, signum sectionis, §  —, permeado de orações sintéticas, apotegmas poderosos; fragmentário, com certeza, mas totalmente encadeado. Enfim, se tratava de uma forma de escrita impressionante, fluindo numa cadência livre, que eu tinha tido pouquíssimo contato. E seu autor, por acaso, era meu professor na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Não demorou para que eu começasse a observar as ressonâncias entre livro e aula. As tardes estudando Álvaro de Campos e sua Ode triunfal foram ainda mais prazerosas com este livro ao lado.

Quando esta revista começou a se esboçar, o nome e a participação de Pedro Eiras surgiram com entusiasmo. Se este volume vem agora a lume como uma tentativa — exitosa ou não — de repensar as formas, os conceitos e os gêneros necessários para um pensamento de ordem verdadeiramente crítica, muito se deve ao quão tocante e inspiradora foi sua leitura — e escuta — para mim. Elas foram, também, um gesto: «entusiasmo, medo, pequena ordem que se impõe às coisas, inquietação do pensamento».


João Passos: Primeiramente, Pedro, gostaríamos de expressar nosso agradecimento à sua prontificada e generosa disponibilidade para esta entrevista. Neste primeiro volume, procuramos produzir alguma espécie de tensão das formas-textuais hegemônicas do mundo acadêmico e universitário. No seu entender — enquanto professor, escritor e investigador —, o artigo científico como o conhecemos, modernamente, tem engessado, de alguma forma, a atividade crítica? Já estaria suficientemente saturado? Ou ainda há salvação e produtividade nele?

Pedro Eiras: Essa é uma grande pergunta, e tudo depende do que entendermos por artigo científico e por actividade crítica. Talvez valha a pena, então, dar um passo atrás, pensar no modo como usamos estas palavras, como as definimos, como elas nos definem.

Para mim, o artigo científico pretende ser a demonstração de certezas, enquanto o ensaio se experimenta como um exercício de dúvidas. Nessas acepções, acho que eu próprio nunca escrevi um único artigo científico, todos os meus textos sobre literatura são ensaios, dúvidas, por vezes dúvidas sobre o exercício de duvidar. É certo que, ao arriscar esse gesto da incerteza, vou construindo caminhos (não há nessa deriva qualquer forma de paralisia e, como quer Camus, il faut imaginer Sisyphe heureux); mas qualquer caminho é instável, e deve festejar a sua própria improbabilidade. 

Por isso, o artigo científico interessa-me relativamente pouco. É necessário, informativo, sistematizador; mas entendo-o só como trampolim para outro gesto, decerto mais arriscado, que se constrói sobre ele, contra ele, nas suas ruínas. Mas o ensaio não consiste numa especulação impressionista, num delírio hermenêutico. Pelo contrário. Os delírios hermenêuticos são lugares de uma arrogância dogmática (Chesterton desconfiava daqueles seres humanos que acreditavam em si próprios, dos loucos incapazes de duvidarem…). Entre a certeza científica do artigo académico e a certeza caprichosa do delírio, entre essas duas formas de ordem, defendo uma inquietante — e festiva — forma de desordem, que inventa o seu caminho à medida que avança.

Mas ainda falta definir actividade crítica: trata-se uma operação teórica, interessada em compreender como funciona o texto literário, ou judicativa, centrada numa avaliação do valor da obra num dado contexto? E podemos realmente distinguir esses dois gestos?

Em rigor, seria preciso redefinir tudo, num exercício algo infernal (porém, Sísifo etc.): o que significa a possibilidade de haver salvação no artigo científico? Salvação é uma palavra que tenho interrogado em diversos textos (num ensaio como «Falhar melhor», num livro de poemas como Paraíso…), depois de ter interrogado a ideia de fim do mundo (nomeadamente no volume A Linguagem dos Artesãos). Nem sequer sei se gosto da palavra salvação, que tantas vezes significa apenas manter as coisas-tal-como-já-eram. Nesse sentido muito específico, não é preciso salvar nada: é preciso perder, e depois reinventar outra vez, de raiz. 

João Passos: Tratando-se de Portugal como espaço situado, parece-nos que o país desenvolveu uma tradição crítico-ensaística muito frutífera e enriquecedora — basta pensarmos em nomes como David Mourão-Ferreira, Vitorino Nemésio, João Barrento e, é claro, Eduardo Lourenço…

Pedro Eiras: …sim, e Luís Mourão, Maria Filomena Molder, José Gil, Silvina Rodrigues Lopes, Gonçalo M. Tavares, tantos, tantas…

João Passos: Você se filia de alguma forma a esta tradição e consegue rascunhar alguns dos motivos das letras portuguesas privilegiarem um estilo e forma tão especiais?

Pedro Eiras: Começo pelo fim: é claro que há textos crítico-ensaísticos notáveis escritos por autores portugueses; mas não sei bem se se trata de uma tradição, de uma linhagem, e ainda menos se há algum privilégio desse género nas letras portuguesas. A literatura e a filosofia em Portugal também recorrem a outras formas e a outros estilos, que não apenas o crítico-ensaístico; do mesmo modo, há muitos outros povos, escrevendo noutras línguas, que criam excelentes caminhos de pensamento ensaístico. Em suma: tenho a maior dificuldade em conceber um privilégio do ensaio sobre os outros géneros; ou uma especificidade do ensaio nas letras portuguesas, uma especificidade do ensaio português, e motivos para uma tradição (existe realmente uma tradição?).

Mas respondo finalmente à primeira pergunta: sim, sou devedor de tantos ensaios que li ao longo dos anos, esforço-me por ser merecedor dessa herança. Melhor: dessa companhia (herança talvez seja demasiado cristalizador; junto de Montaigne ou Eduardo Lourenço sinto-me sobretudo bem acompanhado — estamos perdidos no mesmo labirinto do mundo, a inventar saídas).

João Passoss: Quando nos voltamos à história da filosofia, parece claro que cada tempo histórico exigiu para si mesmo um certo regime e forma por excelência. Platão se vale do diálogo para reproduzir textualmente aquelas virtudes da maiêutica socrática que apenas a oralidade permitiria. Agostinho escreve confissões para inventar a si mesmo teológico-politicamente. Montaigne molda o ensaio como um gênero que dá vazão à própria instabilidade e melancolia do mundo. Descartes escreve meditações para decompor e depois reorganizar a atividade pensante. Pascal encontra nos pensamentos uma forma de admitir a própria fragmentação da investigação. Para não falarmos dos aforismos de Nietzsche, que borram mesmo as fronteiras do que é filosofia e do que é literatura. Isto é, parece que forma e história possuem uma ligação íntima e umbilical. Você concorda com esta hipótese? 

Pedro Eiras: É uma hipótese muito interessante e produtiva, que pede um extenso desenvolvimento — com Les Mots et les choses como bibliografia obrigatória… Dito isto, é certo que Platão usa a forma do diálogo — mas Aristóteles, que partilha praticamente o mesmo tempo histórico, não. Ou seja, a forma escolhida por Platão não é necessariamente uma consequência do seu contexto; é uma escolha individual, e cheia de consequências (com a sugestão para-teatral de um dialogismo — que acaba por ser desmentido pela maiêutica, algo manipuladora, desse encenador omnipotente chamado Sócrates…). 

Voltemos aos factos: Atenas, século IV a.C., Platão, diálogos. Se há uma relação íntima e umbilical entre a forma do ensaio e a história, não é porque o contexto ateniense antigo obriga Platão a escrever diálogos; mas porque os diálogos platónicos nos obrigam, hoje, a compreender a filosofia antiga à luz da maiêutica. 

Ou, para mudar de exempo: quando Nietzsche escreve aforismos, não é porque o seu contexto — ou a tradição do fragmento desde o Athenäum romântico o obrigue (no mesmo contexto alemão, nas mesmas décadas, outros autores escrevem tratados de forte coesão formal); mas a escrita de Nietzsche leva-nos a considerar uma determinada forma de fazer filosofia, aliás com grande furor e a golpes de martelo, não desprovida de uma pulsão literária, poética, mítica. Dito de outro modo, não é o século XIX que inventa Nietzsche como aforista, mas decerto os aforismos de Nietzsche inventam para nós o século XIX.

João Passos: Acredita que nosso mundo contemporâneo tem exigido novas formas — ou mesmo um retorno às antigas — para chamar de suas? Você tem tido contato com experimentações e invenções desta natureza?

Pedro Eiras: Penso que o mundo contemporâneo vive bem com uma pluralidade de formas, e aceita novas experiências. Por exemplo, esse exercício fascinante que é a escrita do génio não original, tal como Marjorie Perloff a designa em 2010, ou seja, uma escrita feita por montagem, colagem, reciclagem de materiais pré-existentes. Claro que a autora evoca The Waste Land como precursor desse modelo (e o poema de Eliot já tem mais de um século: ainda conta como contemporaneidade? ou será melhor descrevê-lo como tradição, distanciando-se a grande velocidade?). Mas a escrita não-original tem sido muito produtiva nas últimas décadas, claro. 

Perguntam-me se tenho contactado com experimentações desta natureza: sim, o meu […]. Ensaio sobre os mestres é um livro de 500 páginas composto apenas por uma montagem de citações – não tem uma única palavra minha, e ao mesmo tempo tudo nele é profundamente meu. E gostaria de dizer mais sobre este livro, mas bem sei que a única forma de comentar esse labirinto de citações seria através de — novas citações! Acho que, por hoje, vou resistir a esse abismo…

João Passos: Quando propusemos esta entrevista, você nos perguntou qual das suas múltiplas facetas seria o foco desta interlocução. 

Pedro Eiras: Quem sou eu? Quantos sou? Whitman responderia em palavras oceânicas: I am large, I contain multitudes. E Rimbaud, fora de si: Je est un autre

João Passos: No nosso entender, no nível de sua obra, quer seja em Ensaio Sobre os Mestres — notável pelo dispositivo da citação —, Platão no Rolls-Royce — fascinante pela marcação fragmentária de parágrafos — ou mesmo em algo como seu Paraíso — com poemas em versos livres, mesclados a partituras, metaliterários etc. —, tal como um Helder, sua proximidade mais imediata é com o ensaio. Contudo, suas aulas, cursos e palestras, enquanto professor, também são aquela «matéria em movimento», «tanto emoção quanto inteligência», que Deleuze celebremente disse ser uma aula produtiva. Relembro como você escreveu, no capítulo Scherzo com helicópteros, no já citado livro sobre literatura e técnica, que «o ensaio é um passeio, o passeio é uma arte poética, a arte poética é uma ética». Seria possível dizermos, então, que todas as suas facetas se confundem porque você extrapola o ensaio e a poesia para a própria vida? 

Pedro Eiras: Sim, é uma descrição muito bela, muito generosa: espero conseguir essa fusão entre vida, poesia, ensaio. Espero não saber bem as fronteiras entre os géneros e as experiências, perder as catalogações. Desconfio do verbo ser, que tantas vezes cristaliza aquilo que na verdade se multiplica em metamorfoses.

João Passos: Quais seriam talvez as linhas mestras do ensaio para que, muito mais que uma forma, seja uma experiência, uma ética?

Pedro Eiras: Precisamente — o ensaio não é uma forma. Um soneto é uma forma: no limite, até poderíamos reconhecer um soneto sem conhecermos a língua em que está escrito. Nada contra essa forma fixa, é evidente: pode ser fascinante escrever sob leis formais rigorosíssimas, herdadas de Petrarca – ou inventadas ad hoc, como fazem os Oulipianos. Mas também me fascina o facto de não haver regras, e penso que o ensaio acontece onde a segurança dos códigos entra em colapso. É certo que podemos chegar à última linha de um texto e dizer: acabo de ler um ensaio. Mas até esse acto de designar implica riscos, exige o comprometimento do leitor; e essa intervenção constitui também um acto ético.

O ensaio não é uma forma, é um gesto. Na verdade — ainda há pouco questionei o verbo ser — nem sequer deveria dizer que o ensaio é o que quer que seja. O ensaio não é, o ensaio ensaia-se, o ensaio tenta, o ensaio arrisca o seu nome, a sua identidade. O ensaio perde-se. Há sonetos, há tragicomédias, há teses de doutoramento, há verbetes de enciclopédias; não há o ensaio. 

João Passos: Você já confessou, em outras oportunidades, que obras como Bach demoraram, por exemplo, cerca de vinte anos para vir a lume. É muito conhecida a história de que Kant, desde o «despertar do sono dogmático», demorou cerca de dez anos para publicar a Crítica da Razão Pura. Contudo, na contemporaneidade, parece que esta necessária paciência e espera da maturação das obras e dos textos tem se perdido cada vez mais. O que vemos, ao contrário, é uma exigência cada vez maior, do mundo editorial e acadêmico, de publicações em ritmo marcial e industrial, mesmo que para isso o rigor e as exigência do texto se percam. O uso indiscreto de inteligências artificiais gerativas, os lapsos de autoplágio e o adoecimento mental nestas esferas parecem responder a este problema. Como você lida com isto? Como funciona — ou tem funcionado — seu processo de escrita neste mundo cada vez mais acelerado, obsessivo e compressor?

Pedro Eiras: Vamos por partes — por duas partes.

Academicamente, sim, é suposto eu produzir uma certa quantidade de textos; existem processos de avaliação que exigem um número de artigos publicados. Confesso que, quando esses mecanismos foram implantados, eu — que escrevo bastante — quase perdi a vontade de escrever o que quer que seja. Escrever para ser avaliado só pode desmotivar-me. Felizmente, foi desânimo de pouca duração: mau era, se baixava os braços por tão pouco! Logo, escrevo e publico porque preciso, porque me apetece, porque acredito que posso chegar a leitores interessantes, porque sim. Não para ser avaliado. 

Literariamente, não sinto qualquer pressão. Escrevo o que quero, quando quero (ou melhor: gostaria de escrever muito mais — mas há a falta de tempo, e uma estranha, quase involuntária procrastinação, talvez um susto que impede de escrever, talvez uma timidez; são questões misteriosas, terão de ficar para outro diálogo…). Alguns leitores protestam muito gentilmente se não publico nada durante muito tempo, e fico-lhes muito agradecido por essa generosidade. Mas não estou subordinado a qualquer exigência do mercado — longe disso.

João Passos: Muito da ideia desta revista que agora estreia vem da tentativa de aproximar duas figuras solares para os membros do nosso corpo editorial: Walter Benjamin e Georges Bataille. Você é um exímio conhecedor de ambos — basta lembrarmos do tributo que faz ao alemão num dos poemas de Paraíso, retomando o suicídio em Portbou, ou sua leitura de Luiza Neto Jorge e Pipilotti Rist à luz de O Erotismo. Acredita ser possível constelar e conjugar estes grandes autores? Como o faria? 

Pedro Eiras: Sim, tanto Benjamin como Bataille me têm acompanhado; há dias, terminei de escrever um pequeno livro — O Conhecimento das Trevas que conjuga Bataille com Herberto Helder; e nos próximos dias tenho de rever um ensaio sobre o surrealismo, Breton e Mário Cesariny, à luz do conceito de «iluminação profana» em Benjamin. Continuo, portanto, a pensar constelações em que Bataille e Benjamin são astros brilhantes. 

Como conjugá-los? Primeiro, vale a pena lembrar que eles foram amigos. Na sua biografia de Bataille, Michel Surya lembra que Benjamin participou do Collège de Sociologie que o autor de Lascaux ou la naissance de l’art criou em 1937, juntamente com Roger Caillois e Michel Leiris; as relações entre os dois autores parecem ter sido de grande amizade. É certo que ambos partilhavam uma matriz de pensamento marxista — e que ambos eram, dentro dessa matriz, profundamente heterodoxos. Há também o ponto de fuga religioso: Bataille fascinado por rituais violentos, como os sacrifícios humanos da civilização asteca, Benjamin pela mística judaica; e ambos tiveram de conciliar o projecto de uma comunidade com essa violência religiosa (Bataille), o conceito de História com um fundo messiânico (Benjamin). Será possível pensar uma conjugação a partir destas proximidades — que são também formas de distância?

Matéria para um ensaio, mais um longo, perigoso ensaio, incerto e apaixonante, experimental, onírico e vertiginoso, improvável, enigmático, constelado…

João Passos: Agradecemos novamente sua voluntariedade e encerramos repetindo algumas de suas palavras: «venham / para a grande festa», «venham: / há espaço para todos, para todas», «este canto é todo vosso».