Peixe morto inteiro



Gustavo Baggio

Como citar

Baggio, Gustavo (2024). Peixe morto inteiro. revista trapeira: filosofia — economia — cultura, Belo Horizonte, v.1, 2024.



Para Jullya e João


Há certos rios que é preciso rever

Hilda Hilst


20 de abril

A memória é um ser vivo e mentiroso. Escrevo justamente para mentir melhor. Durante a festa de aniversário do meu irmão mais novo, um amigo da faculdade me convidou para publicar um conto — ou prosa poética, não me lembro — em uma revista que ele e outros colegas estão editando. Não quero perder a oportunidade de publicar, mas sinceramente não faço ideia do que escrever, as opções são muitas, o que já escrevi não combina com o projeto e, para ser honesto, não tenho botado fé no meu próprio trabalho já tem um tempo. Vamos ver onde isso vai dar, acho que dessa vez entrego algo dentro do prazo. Sempre eles, os prazos. 

21 de abril

Estou fazendo uma lista com os possíveis temas e abordagens do conto. Admito que não são minhas melhores ideias, mas como não posso chamá-las a qualquer momento — se é que virão — vou trabalhando com o que já está por aqui. Até então, temos:

1 — um pequeno conto que já escrevi, porém com algumas modificações; trata-se de fragmentos de memória de um velho escritor. Nada demais, porém um tanto poético.

2 — uma história romântica, um desencontro. Garoto ama — ou acha que ama — garota. Garota ama outro garoto. Dramalhão da porra.

3 — um menino se descobrindo gay — ou bi? — e questionando o mundo. Não tem muito a ver com a proposta da revista, mas acho que consigo algo bonitinho.

4 — um conto sobre escrever um conto.

5 — uma lista de ideias de contos.

Vou decidir em algum momento.

24 de abril

Estou com preguiça dessas empreitadas. Sinceramente, me dói escrever qualquer coisa, ainda mais por obrigação. É como se eu tivesse que desmontar partes de mim para encaixá-las fora, mas tendo que botar o triângulo no círculo. É exaustivo, mas admito que costumo gostar do resultado, pelo menos por um tempo. Depois, sempre acho tudo um lixo. Lygia Fagundes Telles disse que a pouca idade não justifica má literatura. 

27 de abril

Voltei a me animar com a ideia do conto. Reli um capítulo de Crônica de uma morte anunciada e relembrei o espírito que me habitou aos quinze anos quando li Gabo pela primeira vez. Muita coisa parecia possível, um mundo se abriu. Acredito que isso e Marx separaram o menino do homem.

28 de abril

Acho que ainda não sou homem. Ressaca da porra. O café está ajudando, pelo menos não perdi — ainda — a animação de escrever. Acho que é porque esse mês estou melhor financeiramente, posso pedir mais lanches, comprar um livro, sair com alguém. Fico pensando como vai ficar o conto, a revista, como as pessoas lerão. Acho que posso escrever algo escandaloso, não? De repente já posso começar botando os dois pés na porta. Quem será que vou conseguir pegar depois de publicar? Será que vão me chamar mais vezes? Já está fazendo sentido me denominar escritor. 

30 de abril 

Sou uma farsa. Em tudo que me proponho a fazer, sou uma farsa. Empurrei a graduação com a barriga, não faço mais do que o mínimo necessário no trabalho, não corto o cabelo há meses e não consigo escrever um conto, na única vez que me pedem isso. Como alguém ainda espera algo de mim? Vou voltar a ler Balzac.

01 de maio

É feriado do trabalhador e estou trabalhando. Grandes conquistas profissionais. Estava folheando alguns autores contemporâneos em uma livraria mais cedo, comecei a pensar que são quase todos uns vendidos. Não sei explicar, sempre fui ruim de argumento. Como eu disse antes, sou uma farsa, limitado, nunca chego longe. Mas tenho um ponto. Fui folheando um livro de Jacques Fux, uma amiga recomendou. Começou muito bem, estava curtindo até, me identificando com uma coisa ou outra. Fui fuxicar mais o final do romance, de repente o narrador só fala de bundinhas. Das bundinhas que ele imaginava e das que ele recebia. Me lembrou do Lísias, em Divórcio, que basicamente só fala do próprio pau. Ah, e soa um tanto misógino também. Quando li tentei passar um pano, acho que até pensei ter gostado, já que consegui terminar o livro muito rápido. Acho que o filho da puta até escreve bem, mas porra, autoficção? Falar do próprio pau enquanto se vitimiza e ataca a ex? Com algum esforço concluí na época que isso talvez fosse uma crítica a escritores brancos sudestinos que só sabem escrever do próprio pau e se vitimizar. Mas mesmo que essa fosse a intenção, ainda soa como autopiedade. Esses caras não são, nunca serão, Machado, o rei das entrelinhas. Eu muito menos, é claro. Mas me parece cada vez mais fácil publicar em grandes editoras se você for como eles, ainda mais escrevendo sobre o próprio pau ou sobre as bundinhas que deseja. Escrever sobre dar a bunda cês não querem não? Lemebel que me acuda.

03 de maio

Hoje me pesei na farmácia, 56 kg. Preciso começar a malhar e me alimentar melhor, mas pra quê gastar tanto com isso se posso comprar livros e lanchinhos? Ontem, saindo do trabalho, fui visitar minha amiga Juju. Ficamos papeando a noite toda, vimos um episódio merda do reboot de The Twilight Zone, comemos sushi e xingamos algumas pessoas — incluindo o Fux, que nem li pra valer. Do nada ela sentiu vontade de escrever — top três escritoras impulsivas — e me deixou lendo uma espécie de diário. Fui folheando e evitando ter acesso demais a uma intimidade que não é minha — curiosamente não tenho tesão nisso. Encontrei uma lista chamada «coisas que eu odeio». Vou tentar transcrever aqui o que me lembro:

1 — cheiro de ponta de cigarro de palha no cinzeiro.

2 — sujeirinhas que ficam no teclado do computador.

3 — neoliberais, nazistas, direitistas (isso devia estar no topo)

4 — a vagabunda da Fernanda.

5 — peixe morto inteiro.

6 — dar pra quem não me sinto conectada.

7 — minha coordenadora no trabalho.

Peixe morto inteiro. Perguntei a ela o que significa, me ignorou e continuou escrevendo. Me deitei, olhei para os adesivos fluorescentes de estrelas, adormeci. Nada do conto ainda.

05 de maio

Ontem tive um sonho bizarro. Primeiro, me vi morando com um investigador da CIA que estava no Brasil a trabalho, eu acho. No sonho eu estava obcecado por História. Na verdade não sei dizer se era realmente eu. De repente, a campainha do apartamento tocou. Abri e um cara aleatório — embora eu tenha sentido que era um amigo — estava parado, como se congelado de medo. Me disse «desculpa», senti um calafrio. De repente, comecei a ser empurrado pelo nada. Como se uma multidão de pessoas invisíveis passasse por mim, me empurrando, como na hora do rush na estação da Luz — fui lá uma vez. Fechei a porta. Com o tempo, eu e o amigo da CIA começamos a ver e ouvir coisas, como se a casa estivesse repleta de fantasmas. Uma fantasma até se deitou comigo enquanto eu lia Apologia da história, do Bloch. Enquanto ela me sussurrava um plano de acabar com a sanidade do espião, a imagem dela, translúcida e intangível, começou a se revelar para mim. Era como a Madonna mais jovem. Acho que transei com a fantasma. Em seguida, fui ao banheiro e a multidão de espectros invisíveis começou a bradar em uníssono: Peixinho fora d’água! Peixinho fora d’água! E acordei. Tive a impressão de que o investigador morreu no sonho. Será que consigo transformar isso em um bom conto?

06 de maio

Ontem à noite fui numa festa de música eletrônica. Exagerei de novo na bebida e acho que sem querer tomei água com a balinha da alegria, mas não tenho como saber. Acho que beijei um cara, fazia muito tempo que não fazia isso, sempre esquisito, mas também não desgosto. Quis ir pra cama com a DJ, mas ela com certeza nem tchum pra mim. De manhã acordei surpreendentemente bem, lavei roupa, tomei café, passei um paninho nas superfícies. Sentei para escrever e absolutamente nada de bom saiu. Só groselha. Acho que ando polido demais pensando que talvez alguns familiares leiam. Mesmo sabendo o que devo fazer não consigo. Me falta disciplina, me falta leitura. Queria um dia apenas sentar para escrever e fazer algo como o capítulo 7 de Rayuela. Mas não, eu sento, me esforço um pouquinho e sai uma legenda de Instagram, um verso meio Rupi Kaur sentada num café hipster, um desabafo meio classe média se sentindo culpada e tendo overdose de autopiedade. Vou ligar para minha mãe.

07 de maio

Ontem li um livro inteiro de Adélia Prado e hoje pretendo começar a ler a antologia de um poeta piauiense pouco conhecido — ao que me parece — que se chama Mário Faustino. Comecei a escrever algo, não tenho certeza do que se trata ainda, mas parece promissor. Comecei a ter uma crise de tosse e a minha garganta agora tá toda fodida. Se eu fosse rico eu ficaria doente com essa frequência?

09 de maio

Uma travesti me abordou no ponto de ônibus hoje à noite. Ela estava com uma caixa de bombons, provavelmente para vendê-los, mas estava puta que uns caras tinham mexido com ela, xingado, ou algo assim. Também segurava uma cerveja long neck, Corona eu acho. De repente ela começou a me falar coisas da vida e teorias teológicas. Também me parecia revoltadíssima com alguns religiosos hipócritas — não sei se conhecidos dela ou de modo geral. Com essa falazada descobri — disso eu realmente não sabia — que existe uma piração cristã que diz que as cobras têm a língua bipartida como uma punição pela cobra que tentou Eva a comer a maçã do Éden. Achei isso poético e talvez coloque no meu conto. Ela me deixou escolher um bombom para levar, como retribuição por tê-la escutado e, quando estava indo embora, já mais distante, virou novamente para mim e disse: «essa sua máscara não engana mais ninguém, é assim que você realmente quer ser?», e foi embora. 

10 de maio

Camila Sosa Villada. Quero ler os livros dela, mas não tenho muitas condições de comprar livros esse mês. Pensei em roubar, mas sou cagão demais para isso. Camila não tem cara de que me julgaria se eu roubasse os livros dela para ler. De qualquer forma, sinto que o conto já está tomando corpo, algo está sendo feito. O prazo é junho, acredito que dou conta. Hoje vou sair com uma garota que conheci num app de relacionamento. Não estou nervoso, nem animado. Acho que quero desmarcar para escrever, mas sei que mais tarde não vou conseguir escrever mais nada. Não posso esquecer de dar os parabéns para uma amiga aniversariante. Esse ano não vai ter presente. 

12 de maio

Saí com a garota e foi horrível. Tive muitas ideias boas enquanto caminhava pelo centro, mas não anotei nada com medo de parecer um nerdola esquisito. O problema é que realmente sou um. Acho que já passou da hora de deixar aquela máscara cair. Vou focar em escrever pelos próximos dias, deve sair algo bom disso, em algum momento. Sinto que o trabalho tem me atrapalhado. Se não posso me dedicar cem por cento a uma coisa só, então não posso ir muito longe. Queria só ter uma vida digna, poder viver com pouco, ter mais tempo. E ainda inventei de querer ser escritor, como pode dar certo? Como posso tirar dinheiro disso? Tive uma ideia para o conto; um assassino literário, que plagia suas vítimas, todas escritores iniciantes com boas ideias.

20 de maio

Esses dias todos me dediquei a trabalhar e escrever. Posso ficar sem comer, posso ler no banho como um detetive selvagem, posso escrever enquanto cago, dormir de conchinha com um caderno. Ainda não consegui desenvolver uma boa ideia sequer. De boas ideias estou cheio, habilidade para executá-las creio que não, peguei antes de reencarnar como uma ostra. Sei que vai acontecer, precisa acontecer.

24 de maio

Escrevi o conto. Geralmente não consigo me concentrar quando bebo, mas dessa vez rolou. Uma garrafa de vinho seco, alguns amendoins e fui que fui. O problema é que mandei sem revisar, me empolguei demais, descartei todas as ideias que vinha desenvolvendo em prol da última, essa filha da puta que me surpreendeu no meio da noite. Escrevi sem parar por cerca de duas horas, mais bêbado que nunca, o que explica essa dor de cabeça aterrorizante que me acordou agora a pouco. Me lembro apenas de estar escrevendo e bebendo, um gole a cada frase. Lembro também de ter enviado o conto para os meninos da revista assim que terminei, não quis esperar mais, tinha certeza de que a ideia continuaria perfeita ainda no dia seguinte. Esse é o problema, não me lembro de como ficou e agora estou com medo de ver.

25 de maio

O conto vai ser publicado. Surpreendentemente gostaram, eu não o li. Lembro que parti da anedota que me contaram na faculdade certa vez, de que Adorno teria infartado ao ver os peitinhos de suas alunas se manifestando. No meu conto eu tenho quase certeza que escrevi sobre peitinhos, bundinhas e paus. Acho que devo ter escrito algo sobre dar a bunda também. Se não me falha a memória, escrevi sobre um velho professor e escritor tarado querendo publicar o seu primeiro romance, uma obra extremamente pretensiosa e vaga, mas que dá certo por conta do prestígio profissional do autor. Se eu for ler, será quando publicarem.

18 de junho

Publicaram a revista. Meu conto está lá, ainda não li, nem pretendo. Vai ser assim a partir de hoje, como um ator que não suporta se assistir atuando. Vamos todos — eu e o pessoal da revista — para um rolê de comemoração. Elogiaram minha escrita e isso me surpreendeu, mas aparentemente nem todos gostaram ou entenderam. Vai ser assim agora, faço o filho e o abandono, sou homem para fazer, talvez não para assumir. Sem máscara.