Dias perfeitos

{ ou a beleza do prosaico }



Andrea Ledo

Como citar

Ledo, Andrea (2024). Dias perfeitos {ou a beleza do prosaico}. revista trapeira: filosofia — economia — cultura, Belo Horizonte, v. 1, 2024.

Em 1982, durante o Festival de Cannes, Wim Wenders convidou diversos cineastas ao quarto de um hotel para responderem, diante de uma câmera, ao seguinte questionamento: qual o futuro do cinema? A pergunta vinha carregada de um certo fatalismo em relação à possibilidade de se fazer cinema ante os avanços tecnológicos que aparentavam estar cada vez mais distanciando as pessoas das salas de cinema e das narrativas cinematográficas. Os materiais reunidos compõem o documentário Quarto 666 (1982), que conta com reflexões de nomes célebres como Godard, Antonioni, Herzog e Fassbinder. Longe de chegar a um consenso, o filme oscila entre depoimentos que assumem a morte do cinema como algo certo e próximo; e outros, como o de Herzog, que apontam para a longevidade metafísica da sétima arte.

A questão da mortalidade é retomada na última obra de Wenders, não como tema motriz, mas quase como um pressuposto tácito. Dias Perfeitos (2023) se inicia com um plano aberto do amanhecer na cidade de Tóquio, com centenas de rastros de luz distribuídos por um sem número de casas, arranha-céus e elevados. O primeiro corte revela a imagem de copas de árvores farfalhando ao vento sob uma penumbra espessa. O que se segue é uma sequência de ações cotidianas do protagonista Hirayama (Koji Yakusho): ele acorda, dobra seu colchonete e seu cobertor, checa um livro rapidamente, escova os dentes, apara o bigode, rega pequenas mudas no quarto vizinho, troca de roupa, pega suas chaves e algumas moedas e sai de casa. 

olhos postos no horizonte

os mesmos que antevemos no primeiro plano

— mas não mais o mesmo —

há um prazer necessariamente silencioso e solitário no ato de olhar

Ele entra em seu carro e escolhe uma dentre suas várias fitas cassetes: o som de House of the rising sun, de The Animals, nos embala junto com ele em uma sequência que, ao mesmo tempo, delineia o espaço cênico — a cidade e sua arquitetura sob os primeiros raios da luz matinal — e desperta uma certa cadência contemplativa. Hirayama é um homem mais velho que habita um centro urbano pós-moderno a partir de experiências analógicas. Os objetos que ornam seus dias (para além dos utensílios laborais) são livros, fitas cassetes, discos. Assim como os objetos, as músicas que ele escuta pertencem ao passado. Isso não quer dizer que soem obsoletas; na verdade essa dualidade entre passado e presente é essencial para a construção do personagem.

Seu trabalho consiste em limpar banheiros públicos, mas, ao contrário do que se poderia supor, ele não o faz contrariado. Acompanhamos seu esmero e concentração absolutos em cada ato ínfimo. Nas pequenas pausas que faz entre um banheiro e outro, seu olhar se volta mais uma vez para o céu, e ele é tomado por um contentamento silencioso, como se recebesse um presente inesperado. Há uma árvore em especial que ele fotografa diariamente em seu horário de almoço, após minutos de observação afetuosa, (uma única foto, com uma câmera analógica), como em um ritual íntimo e sagrado.

as árvores podem nos segredar alguma verdade

A questão da mortalidade, neste caso, está expressa na passagem do tempo. Acompanhamos as mesmas ações, com suas devidas variações, ao longo de dias. É a combinação entre a repetição dos atos e suas ligeiras metamorfoses que nos coloca diante de uma plácida composição temporal. Qualquer possibilidade de um grande conflito é frustrada, tanto pela quietude atenta do personagem, quanto pelo decurso das horas. É a morte anunciada de cada dia que o aguarda. A beleza constitutiva da obra está nessa espécie de dilatação temporal que permite que nossa atenção se volte às minúcias. Impossível não pensar nas considerações de Andrei Tarkovski, em Esculpir o tempo: 

Acredito que o que leva normalmente as pessoas ao cinema é o tempo: o tempo perdido, consumido ou ainda não encontrado. O espectador está em busca de uma experiência viva, pois o cinema, como nenhuma outra arte, amplia, enriquece e concentra a experiência de uma pessoa — e não apenas a enriquece, mas a torna mais longa, significativamente mais longa. (Tarkovsky 1982: 72)

Não parece coincidência que Dias Perfeitos seja o trabalho de Wenders que mais se aproxima da obra de Yasujiro Ozu, reiteradamente apontado como o «poeta da rotina». Seus filmes começam e terminam com variações nuançadas, com raras informações sobre as personagens, suas intenções ou seus feitos pregressos. Se, em Tokyo-Ga (1985), Wenders recorre à homenagem direta, em Dias Perfeitos parece imperar uma busca pelos movimentos aparentemente banais e espiralares tão caros à Ozu. O triunfo da narrativa se dá nas lacunas, nos espaços do não-dito, no que só podemos supor.

Byung-Chul Han, em A crise da narração, reflete sobre a crescente impossibilidade das narrativas na contemporaneidade, por mais em voga que o termo esteja. Vivemos, segundo ele, em uma era de difusão tão acelerada e fragmentada de informações, que há cada vez menos espaço para a possibilidade de narrar o mundo. A narração é essencial para a manutenção da história humana, ela «produz um contínuo temporal» (Han 2023: 14). A narrativa exige certo distanciamento e nunca se revela plenamente. A informação, em contrapartida, «apresenta o mundo» (Han 2023: 20). Walter Benjamin, em seu célebre ensaio O contador de histórias, já anunciava que «metade da arte narrativa está em evitar explicações» (Benjamin 1936: 203) Porém, para que haja a narração, é preciso que alguém escute. A escassez da narração está intimamente relacionada à pobreza da escuta.

É na possibilidade de escutar o mundo através das imagens que residem os aspectos sublimes de Dias Perfeitos. Em um momento de valorização extrema do storytelling, em que tudo em um filme precisa ser apreensível e explicável, ou seja, consumível  e vendável, Wenders caminha na direção oposta. O que interessa no longa não é sabermos por que o personagem mora onde mora, por que trabalha limpando banheiros, por que não tem contato com sua família ou por que lê Faulkner antes de dormir, mas observar a passagem do tempo como uma forma de aprendizado. É na consciência de sua finitude que Hirayama é capaz de se atentar ao presente. A pergunta «haverá futuro para o cinema?» soa ainda mais pertinente do que era em 1982. Paralelamente, a existência de certos filmes parece mais imprescindível do que nunca.

A árvore que Hirayama escuta e fotografa lhe visita em seus sonhos. Alguns dos planos mais belos e misteriosos do filme se dão quando ele está dormindo e vemos a tela ser tomada por uma contraposição de imagens em preto e branco em que podemos reconhecer sobretudo as folhagens ondulantes e serenas diante para as quais ele sorri todos os dias quando olha para o céu. A epítome da preciosidade desta imagem se revela após os créditos, como uma dádiva aos pacientes:

«Komorebi é a palavra em japonês para o jogo de luzes e sombras que se produz quando as folhas das árvores balançam ao vento. Isso só acontece uma vez, naquele exato momento».

 

Referências

Livros

Benjamin, Walter (1936). O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012.

Han, Byung-Chul (2023). A crise da narração. Tradução de Gilda Lopes. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2023.

Tarkovsky, Andrei (1982). Esculpir o tempo. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Martins Fontes, 2010.

Filmes

Dias Perfeitos. Direção: Wim Wenders. Japão/Alemanha. 2023.

Quarto 666. Direção: Wim Wenders. Alemanha/França. 1982.

Tokyo-Ga. Direção: Wim Wenders. Alemanha/EUA. 1985.