Y'Y, de Amaro Freitas



Pablo Sathler

Como citar

Sathler, Pablo (2024). Y'Y, de Amaro Freitas. revista trapeira: filosofia — economia — cultura, Belo Horizonte, v. 1, 2024.

Sumariamente, a paisagem sonora é definida por Murray Schafer como «qualquer campo de estudo acústico [consistindo] em eventos ouvidos e não em objetos vistos. Mais que isso: os sons podem ser alterados ou desaparecer e merecer apenas parcos comentários, mesmo por parte do mais sensível dos historiadores» (Schafer: 1977, 23,24). Quando escutamos algo de forma espontânea, rapidamente nos perguntamos sobre a origem daquele som. Neste nível de escuta, ainda não nos interessamos genuinamente pelo som, mas apenas procuramos sua causa e fonte. Este momento é chamado por Schafer de escuta (écoute) e revela uma atividade ativa em relação ao som. Por outro lado, quando ouvimos um som, nossa atitude ainda é passiva diante do fenômeno.

Não é exatamente o que esperamos quando ouvimos música, mas a ideia pode confeccionar uma obra musical sem grandes entraves. Tal paisagem é construída de forma livre, tendo como único fundamento a atmosfera desejada pelo compositor. A partir disso, as tonalidades musicais são usadas tal e qual por sua irmã: as artes visuais. Transitar entre mundos artísticos garante ao disco Y’Y (2024) de Amaro Freitas uma posição única no universo sonoro brasileiro.

Embora seu instrumento seja filho de outro continente, a percussão em teclas do pianista pernambucano é certamente antropofágica. Para além dos hipnóticos ostinatos, os acentos deslocam a malha sonora para direções surpreendentes, levando o ouvinte a regiões da escuta distintas do convencional. Hackeando o piano, Amaro nos leva a distinguir a escuta da mera audição.

No Encanto da Mata, subtítulo da música de abertura Mapinguari, o ouvinte é colocado  numa espécie de floresta a ser explorada. Os sons surgem como pequenos animais despertos que se espreguiçam. Sutilmente, Uiara, a Encantada da Água, surge em meio a densa mata. Nesta música, Amaro recorre ao piano preparado. Tal procedimento consiste na inserção de pequenos objetos como prendedores de roupa, peças de dominó e o que mais desejar o músico entre as cordas do instrumento. Assim, as notas adquirem outras vozes que não as que nos familiarizamos há muito. Entre as três primeiras músicas há um fio sonoro que as liga em um só bloco sonoro; Deus é conclamado em sua África em Viva Naná, nítida homenagem ao intrépido Naná Vasconcellos.

De forma displicente, a Dança dos Martelos vai tomando forma e, paulatinamente, o ambiente também adquire forma. Os golpes de martelo lembram, em alguns momentos, as mesmas batidas provocadas por Stravinsky em seu sacrifício primaveril. Finda, então, a sangria, e assim começa o Sonho Ancestral. Mais uma vez, o piano preparado soa ao lado da kalimba, instrumento melódico-percussivo. Aqui, dois modos de ataque confluem: as batidas dos martelos nas cordas do piano e as pinças nas teclas da kalimba. Durante este sonho, certa melodia vem à baila, ancorando específica imagem nacional encantada.

Ainda com o sacrifício como pano de fundo, flautas soam pela primeira vez na música que dá nome ao disco. Y’Y parece uma conciliação entre a umidade da floresta e do sacrifício realizado naquele espaço com os fortes e cadenciados ventos de Shabaka Hutchings: finalmente seres humanos habitam essa terra encantada. De início isso parece bom, mas certos acentos soam como golpes de machado a fim de pôr toda e qualquer ancestralidade abaixo.

A guitarra de Jeff Parker empresta novo timbre à escuta do álbum. Ao dobrar algumas poucas melodias com Amaro e ser conduzido pelo piano, desta vez pronto e elétrico, Parker cria um Mar de Cirandeiras nas parcas cordas de seu instrumento: bastam apenas seis cordas para que o material continue a soar. Brandee Younger se faz Gloriosa com sua harpa na penúltima música do disco. O diálogo entre esse emaranhado de cordas empresta à música certa delicadeza onírica que, este sim, nos dá vontade de continuar a experimentar. Depois desse itinerário, cuja origem foi a escuridão e densidade da mata e certo percurso por devaneios, ora com graça, ora com sangue, os personagens tornam-se Encantados. Agora, todo o time está a postos: Hamid Drake (bateria); Shabaka (Flauta); Aniel Someillan (contrabaixo acústico) e o xamã do grupo, Amaro Freitas (piano).

Longe de qualquer convencionalismo ou tradicionalismo, o disco Y’Y é, sem dúvidas, antropofágico e encantador. Ainda que pese certo misticismo nesta descrição sumária, o nível técnico dos músicos é sem igual. Talvez por isso, eles façam música e não um amontoado de notas, nas quais os dedos ditam mais do que a mente de quem os comanda. Não se preocupe: tal tipo de virtuosismo infantil é totalmente posto à revelia no quarto disco do pernambucano Amaro Freitas.

Referências

Schafer, Murray (1977). A afinação do mundo. Tradução de Marisa Trench de Oliveira Fonterrada. São Paulo: Ed. Unesp, 2011.