A demagogia nos tempos modernos
Situações (I) ¹
Tradução: Lauro Eusébio
Revisão: Helena Azoubel
Como citar
Péguy, Charles. (1906). A demagogia nos tempos modernos: Situations (I). Tradução de Lauro Eusébio, revisão de Helena Azoubel. revista trapeira: filosofia — economia — cultura, Belo Horizonte, n. 1, 2024.
Essa tradução é felina e carinhosamente dedicada a Riz. B.
...mais difícil, absolutamente impossível de conceder a vocês; infinitamente mais que um milagre; um milagre infinitamente mais difícil do que já foi exigido por qualquer religião, que foi ou que se diga revelada. E aqui nos encontramos em constância com nós mesmos, porque aqui nos cruzamos de novo com uma de nossas proposições anteriores. Aqui nos reunimos particularmente àquilo que indiquei no meu Zangwill² sobre o milagre infinito, eterno, absoluto, que o mundo moderno exige inocentemente logo de início, antes do limiar de sua teoria científica da história. Aqui nos reunimos a esse grande milagre moderno, esse grande postulado milagroso do método histórico. E por esse duplo encontro, por esse duplo cruzamento (pelo cruzamento, em um segundo grau, desses dois cruzamentos elementares): o primeiro, de que a demagogia é essencialmente a exploração do milagre, e o segundo, de que o método histórico é essencialmente a aplicação de um milagre. Enfim, e conjuntamente, de que o mundo moderno é mais faminto de milagre — e mais garantido do que qualquer outro mundo, em toda a história da humanidade, por esse duplo cruzamento, por esse segundo grau de cruzamento. E através desse cruzamento de cruzamento que obtemos, percebemos enfim a profunda consanguinidade da demagogia e dos métodos históricos; e porque os historiadores modernos são tão suscetíveis à demagogia, começamos a distinguir, começamos a perceber essa afetuosa, consciente ou não, mas cúmplice predisposição: essa verdadeira singular inclinação dos tempos modernos à demagogia.
Enfim, nos deparamos com um terceiro e último cruzamento, ao menos por hoje: nos reunimos aqui com o que pude apenas indicar em um número anterior, de que toda operação de perturbação e desordem etiquetada de epíteto revolucionário é essencialmente uma operação reacionária, à medida que uma revolução só pode ser uma organização, uma ordenação, uma instauração — instauratio magna —, uma instituição, o estabelecimento de uma nova ordem.
No entanto, nem a ordem pode surgir da desordem, nem a vida pode surgir da morte; quando acreditamos, quando dizemos que a vida surge da morte, ou fazemos uma metáfora, uma antítese romântica, ou falamos sério; e se falamos sério, temos de concordar. A vida surge da morte, com frequência, mas não no sentido em que a vida de um vivo surgirá da morte desse mesmo vivo. A vida surge da morte, mas apenas no sentido que a vida de um vivo surge da morte de outro vivo, ou de outros vivos. Nunca, — salvo milagre, — e aqui ainda encontramos o mesmo milagre, e estamos decididamente numa encruzilhada hoje, — nunca, salvo milagre, a vida de um vivo surge da morte desse mesmo vivo.
É exatamente disso que se esquecem as demagogias modernas. Elas esquecem que nesse caso particular, no caso da revolução social, são os mesmos povos e a mesma humanidade que servem.
São os mesmos povos que servem; e quanto mais os tempos modernos apoderam-se de sua causa, mais os tempos modernos se estabelecem, e mais o regime moderno se estabelece e mais serão os mesmos povos. Cada vez mais será verdade que são os mesmos povos, porque quanto mais os tempos modernos se estabelecem, mais se torna verdade que, ao menos a esse respeito — a respeito da demagogia, das demagogias particulares — as divisórias pouco a pouco desaparecem dos compartimentos que nos tempos antigos abrigavam povos diferentes.
Consequentemente, quanto mais os tempos modernos apoderam-se da causa dos povos, mais a demagogia moderna automaticamente se torna perigosa.
Além disso, até agora, quando a demagogia usava um povo, ele poderia se retirar, e surgia sempre um outro povo, coisa que o isolamento mesmo garantia. Hoje, e talvez para sempre, enfim, nos tempos modernos, justamente porque o isolamento se dissipa e desaparece, a demagogia moderna usa, significativamente e ao mesmo tempo, significativamente ao mesmo nível, todos os povos. Não há mais, não pode mais haver um povo de reserva³. E esse é o perigo capital, o perigo ainda não experienciado, da demagogia moderna.
A todo instante ela afeta toda a humanidade, significativamente, ela abrange toda a humanidade, ela usa toda a humanidade. Não apenas todos os povos, ao mesmo tempo e ao mesmo nível, no interior da humanidade comum, mas também todos os homens, significativamente e ao mesmo nível, no interior dos povos comuns. Os compartimentos interiores dos povos não estão menos em ruínas que seus compartimentos exteriores, suas divisões interindividuais não estão menos em ruínas que suas divisões interpopulares. E se não se pode mais haver povos de reserva, tampouco existem, nos tempos modernos, homens de reserva.
É exatamente por isso que o mundo moderno corre um risco que os outros mundos não correram. É exatamente por isso que a humanidade nos tempos modernos corre um perigo que ela não correu e que ela não poderia correr nas organizações antigas, nas organizações celulares.
Existe hoje um perigo, uma forma de perigo até aqui desconhecida, total, capital, universal, irreparável.
Os erros antigos da humanidade podiam ser sempre compensados, as demagogias antigas podiam ser reparadas; de um povo usado, um novo galho podia sempre surgir, como de uma velha árvore. Hoje, ao contrário, todo erro é irreparável, toda demagogia é adquirida, porque toda demagogia leva consigo, a todo lugar, o próprio tronco.
É exatamente isso o que nossos demagogos modernos não querem considerar, porque eles certamente percebem, mais ou menos confusamente, que essa característica essencial do mundo moderno na história da humanidade lhes cria uma responsabilidade apavorante, revestindo todas as suas operações, vestindo todos os seus crimes com uma responsabilidade que, desse modo, se faz eterna.
É essa responsabilidade que os modernos, já tão temerosos, temem mais que qualquer outra coisa.
Também, por mascararem essa responsabilidade pelas suas próprias obras, repentinamente feita eterna, as demagogias modernas causam o efeito de não serem modernas, como se não se produzissem na era e no mundo moderno, como se a humanidade fosse ainda reservada e sempre devesse ter suas reservas; como se houvesse em algum lugar, no aguardo pelo dia seguinte dessa revolução que eles querem entronar, uma humanidade de reserva.
Mas porque são modernos, eles são os únicos, ao contrário, que não foram e que não terão mais uma humanidade de sobra.
São os mesmos homens que servem nos mesmos povos. São os mesmos povos que servem na mesma humanidade. É a mesma humanidade que serve, a mesma velha e comum humanidade, e não haverá outras, porque as reservas da terra estão hoje todas esgotadas.
Eis exatamente o que vocês negligenciam.
Vocês são modernos. Tenham ao menos as virtudes de seus vícios. Vocês se dizem modernos. Ao menos não esqueçam a única lição que os modernos não têm o direito de esquecer, nem negligenciem o único conhecimento que os modernos não podem absolutamente negligenciar: a lição, o conhecimento, daquilo que é orgânico, a memória orgânica, a história orgânica, o registro de um organismo, a memória viva. Ou, mais simplesmente — porque seu nome basta propriamente a descrevê-la — : a memória.
Eles negligenciam a consideração da memória, isto é, a consideração de tudo em matéria de coisas vivas e, talvez, em todas as matérias.
Vocês pensam como se tivessem à sua disposição tanta humanidade quanto desejam, como se possuíssem humanidades à vontade. Isto é, vocês pensam como um Deus, não como um homem. No Zangwill, fomos rápidos a chegar a essa constatação de que a história moderna conduz sua investigação como se fosse um Deus. Nós nos cruzamos conosco aqui pela quarta, quinta ou sexta vez, e somos muito rapidamente conduzidos a constatar que o demagogo moderno administra sua ação como se ele fosse um Deus.
Ele ostenta humanidades como a natureza ostenta ovos de bacalhau. Mas não está demonstrado, nem por um segundo, que as humanidades sejam tão inesgotáveis quanto desovas de peixes.
E quando se vêem reduzidos à força a uma única humanidade, eles vivem com a ideia de que isso não tem efeito; de que essa humanidade será sempre tão boa, que ela continuará boa mesmo depois de servir à demagogia — tanto quanto antes. Isto é, fazem uma completa abstração da memória. Que é tudo.
Vocês acreditam que, quando tiverem criado gerações inteiras, ou fragmentos de gerações, ou mesmo a passagem entre as gerações, em alguns anos, num trabalho vil e defeituoso, vocês poderão compensar tudo. Vocês acreditam que a seu comando tudo recomeçará, ou mesmo que começará como se não tivesse sido nada, como se não tivesse jamais ocorrido qualquer interrupção, qualquer alteração, qualquer compromisso, qualquer corrupção. É como se vocês dissessem que um homem que, ao longo de vinte ou trinta anos, caminhou corcunda, pudesse em seguida, ao comando de vocês ou a seu próprio comando, caminhar direito. É como se dissessem que um homem que passou quarenta anos mentindo pudesse, em seguida, ao mínimo gesto, começar a falar direito. Como se vocês quisessem nos fazer acreditar que podemos ser homens desonestos ou mulheres desonestas e, ao simples comando de qualquer pessoa, instantaneamente começar a viver direito.
Vocês esquecem, vocês negligenciam que a memória é a continuação da vida orgânica, a continuação do passado no presente, e do presente no futuro. Vocês esquecem, vocês negligenciam todo o orgânico. Isso que vocês exigem, a abolição total da memória pelo porvir, isso não é menos, meus caros amigos, (isso não é outra coisa, em uma outra forma, em forma moderna) do que o milagre e o mistério da Criação.
O que a natureza e a simples vida, o que a razão, o que a humanidade sozinha responde a vocês, é que seus anos de sabotagem, seus exercícios defeituosos, seus ensinamentos de ofícios vis, seus ensaios de perversão deixarão — na prática, deixam já — no espírito de seus trabalhadores um rastro, uma marca indelével; e em toda a memória de toda a humanidade, uma pegada inapagável. Quaisquer sejam as lutas econômicas, não é nunca impunemente que manuseamos tais instrumentos de luta. E quanto mais dirigirem-se ao destinatário, mais frequentemente se voltam contra o emissário original.
A operação de mensuração pela qual vocês avaliam seu poder através da quantidade de defeitos ou de negligências que vocês podem produzir — através da diminuição da quantidade ou da qualidade dos feitos — é certamente o cálculo mais falso e mais enganoso que podemos imaginar. Primeiramente (e para falar a linguagem da academia), ele é metafisicamente enganoso e falso — ou seja, é enganoso e falso em grau supremo, num grau infinito, no grau mais real que se pode conceber — porque as duas grandezas que vocês medem, uma pela outra, e uma sobre a outra, não são comparáveis, não são da mesma ordem. E, longe de serem comparáveis entre elas, ao contrário: se movem em sentido contrário e por conseguinte são, entre si, incomensuráveis. Sendo a deficiência, nessa mesma linguagem, o completo contrário da eficiência e da eficácia, e sendo as causas da deficiência, assim, o completo contrário das causas da eficiência e da eficácia, as causas deficientes são o completo contrário das causas eficientes e eficazes.
Em segundo lugar, esse cálculo é enganoso e falso a posteriori, porque é um fato da experiência de que nada é tão fácil quanto fazer mal uma vez que consentimos de entrar nas vias da demagogia, uma vez que consentimos de saudá-la. É muito mais fácil, — infinitamente mais fácil, diriam os metafísicos, — é muito mais fácil não fazer nada do que fazer algum trabalho, de fazer mal que fazer bem. E sobretudo é muito mais fácil, — infinitamente mais fácil, — uma vez que consentimos, uma vez que a saudamos, de entrar em vias de se tornar um mestre da demagogia e dar essa lição deletéria. É infinitamente mais fácil não se fazer fazer nada do que se fazer fazer qualquer trabalho, é infinitamente mais fácil fazer alguém fazer mal que fazer alguém fazer bem. Consequentemente, seu poder de malfazer e de não-fazer — nem essencialmente, nem como experiência própria, nem como experiência de ensino — não se mede absolutamente pelo seu poder de fazer.
Enfim, e em terceiro lugar, mesmo que se medisse, mesmo que, por impossibilidade ou por uma extrema, excessiva bondade de discussão parlamentar, ficasse concedido a vocês que a medissem, isto é, que sua força, seu poder de produzir futuro, de modo, de trabalho, de construção, fosse medida pela sua força, pelo seu poder atual de destruição, de malfazer, de indolência e que fosse igual ela, mesmo então seria infinitamente necessário que esse poder lhes fosse suficiente. Porque mesmo assim (e voltando da realidade passada ou presente à realidade presente ou futura) é preciso infinitamente mais para fazer o bem do que para fazer o mal, infinitamente mais para fazer do que para não fazer nada ou para desfazer.
Assim, no passado atual ou no presente, nem essencialmente, nem como experiência própria, nem como experiência de ensino, o seu poder de ação não pode ser medido, não pode ser igualado a seu poder de reação, e está infinitamente longe disso. E, além disso, se voltando para o presente ou para o futuro, seria necessário que o seu poder, mesmo igual, mesmo supostamente igual, fosse suficiente para realizar uma ação que seria a contra-ação, a antipraxia de sua reação. E, finalmente, há ainda esta memória indelével. E ainda além, se quiséssemos, isso não seria tudo.
Não manuseamos impunemente tais instrumentos; um organismo não incorpora impunemente tais venenos; uma memória não registra impunemente tais imagens. Vocês bem sabem quando começam a produzir mal ou a não produzir. O que vocês absolutamente não sabem é quando conseguirão parar de fazê-lo; e mesmo se conseguirão parar — é necessário o dobro, infinitamente e mais. A questão não pode nem mesmo ser colocada em termos de saber quando vocês recomeçariam a marchar em sentido contrário. E de subir de novo a encosta da qual vocês desceram.
Eis um dos personagens mais velhos, mais conhecidos, mais essenciais, mais verificados, mais reconhecidos pela humanidade comum; é uma verdade ela mesma humilde e comum, é um fato da experiência universal que, em matéria semelhante — como em tantas outras: é tanto mais difícil, infinitamente mais difícil subir de novo do que é descer. Em matéria de vício, em matéria de demagogia, não é somente mais fácil descer do que subir, mas nada é tão fácil quanto descer, e nada tão difícil quanto subir. A partir do momento no qual intervém a demagogia, a velha humanidade retoma seu velho costume. Ela se põe novamente na trilha da maior encosta.
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Eis o que sabem bem esses antigos trabalhadores, os únicos que foram realmente revolucionários, os únicos que conhecemos que realmente fizeram revoluções. Ou, melhor, eles nem estavam procurando tanto. Eles não analisavam, como teríamos de fazer, o que era o patronato inimigo. Nem se perguntaram, como nós teríamos de nos perguntar (como nossos teóricos socialistas fariam bem de começar a se perguntar) quanto o patronato atual não representa nada além do egoísmo — para agradar quem conheço, eu diria mesmo egoísmo de classe — , mas em que medida ele representa (acidentalmente, claro; por uma atribuição acidental e provisória) também os interesses permanentes do trabalho, as exigências atuais do consumo, e ainda, através do presente, os interesses comuns da humanidade.
Eles não estavam procurando tanto, esses antigos trabalhadores. Eles faziam seu trabalho. Eles fizeram, na realidade, revoluções. Eles trabalharam, elaboraram as revoluções. Eles sentiam por um sentido, por um sentimento profundo, eles sabiam por uma experiência profunda que uma revolução é, mais que tudo, uma operação, operação de trabalho, que é, de todas as elaborações industriais, sobretudo uma revolução econômica e social, industrial: a elaboração industrial de tanto, a infinitamente mais difícil delas.
Mas eles não procuraram tanto. Eles iam com instinto. Agiam instintivamente. Trabalhavam com instinto, eles fugiam dessa depravação, de trabalhar mal, como o homem honesto foge de toda depravação, instintivamente, como se foge de uma praga odiosa; antes de toda reflexão, antes mesmo de todo reconhecimento. Eles odiavam trabalhar mal tão claramente como se odeia um verme inquieto corrompendo as vísceras. O homem honesto não é aquele que se livra do vício adquirido, mas aquele que, instintivamente, não quer saber nada do vício. A mulher honesta não é aquela que se livra da imodéstia, mas aquela que não quer saber de nada.
Eu mesmo quando dou tantas razões para que sejamos honestos e para que trabalhemos bem, mostro que não sou um desses antigos trabalhadores, que não sou como eles, — é verdade que acredito que já não podemos mais ser como eles, — que também eu sou um moderno, que também eu sou contaminado de demagogia moderna, dessa demagogia que combato, — digamos, para ser caridoso: precisamente porque eu a combato.
Quando digo que o malfazer faz mal, antes de tudo, ao trabalho comum, à produção e, em sequência, ao consumo; e, sobretudo, que este mal se faz, antes de tudo, a si mesmo; que em todo malfazer ele se malfaz a si. E que esse malfazer de si mesmo é então logo irreparável.
O malfazer contribui para o roubo; e podemos dizer que é ele mesmo uma espécie de roubo. Tudo que vai contra a honestidade comercial vai contra o socialismo como tudo que vai contra a honestidade industrial vai contra a revolução. Essa proposição, que o socialismo é uma generalização do roubo, só foi defendida por burgueses imbecis. Seria peculiar que a ideia que os burgueses, nossos inimigos imbecis, querem nos dar de nós mesmos, se tornasse, pelas nossas próprias mãos, nossa resolução de vida.
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Há nessas bases práticas da demagogia moderna um inacreditável esquecimento, um inacreditável desconhecimento, um inacreditável desprezo ao interesse comum. Esse menosprezo, ou essa ignorância, emerge a todo instante, em detalhe e em todo detalhe. Mais recentemente, os trabalhadores do Estado de não-sei-mais-qual arsenal, acredito ser aquele de Brest⁴, se gabavam em reunião pública de ter tido o cuidado, no momento da greve, de deixar certos materiais nos fornos que, ao esfriarem, tornariam esses fornos completamente inutilizáveis. E se divertiram muito. E desde o encerramento momentâneo da greve, estamos certos de que os defeitos não cessam nos ateliês e nos arsenais do Estado, defeitos que o governo abafa, porque é covarde ante a sabotagem, como ante toda demagogia que se torna moda.
Deixo de lado, neste caso, o crime de traição. Por hoje, quero considerar apenas o processo industrial, econômico e social. Quando os altos-fornos do Estado são desativados, enfim, o que isso quer dizer, em definitivo? Em definitivo, isso quer dizer que todos nós contribuintes, que nós cidadãos somos chamados a pagar indevidamente um imposto adicional, um adicional de imposto para nos comprar novos fornos. Digo indevidamente não no sentido moral, não no sentido da justiça moral, caso em que eu haveria evidentemente toda a razão. Mas digo indevidamente no sentido dos meus companheiros, no sentido industrial, social, econômico. Essa sabotagem está longe do caminho industrial, como nos dizem, no caminho da indústria moderna; digo que ela é industrialmente indevida, que é economicamente injusto que nos organizemos de forma a desativar industrialmente nossos fornos, economicamente suprimidos, industriosamente exauridos, prematuramente envelhecidos, artificialmente esvaziados de seu conteúdo de utilidade, antes da realização normal de sua velhice automática, antes da conclusão espontânea de seu rendimento natural. Nunca me farão acreditar que o movimento industrial, moderno ou não, tende a fazer com que as máquinas industriais não cheguem ao fim de seu desgaste industrial normal, à exaustão de sua utilidade mecânica. Usura, uso, utilidade⁵. O movimento industrial, ao contrário, moderno ou não, tende evidentemente a obter o redimento maximum e optimum, pelo dispêndio minima. Digo que essas sabotagens não são apenas injustas e imorais, injustas quanto à moral, mas que são economicamente e industrialmente injustas, e que, por serem manobras de destruição, são essencialmente falsas, simplesmente operações destrutivas falsas.
Nesses tipos de empresas, em todos os tipos de empresas, e mais que em todos os outros tipos de empresas industriais, até mesmo as de Estado, em todos os tipos de histórias há sempre alguém quem paga. Nessa espécie em que nos atemos um instante, quem paga, em definitivo? Por meio de imposto — Lagardelle bem sabe, Lagardelle mesmo⁶ — quem paga é o proletariado, o proletariado da indústria, o trabalhador, falo do verdadeiro, o mais ou menos miserável proletário, o trabalhador industrial. É isso que acredito que nossos eruditos nomeiam de repercussão, automática, do imposto. E como o Estado nos constringe a pagar seus impostos, sob o nome de contribuições, nós podemos dizer, em definitivo, e mesmo devemos dizer que esses sabotadores do Estado nos constringem — nós, trabalhadores industriais — a pagar o preço de suas palhaçadas. Fazer o povo simples pagar suas fantasias, foi sempre privilégio dos grandes deste mundo. Em definitivo podemos então dizer, enfim, e devemos dizer, que a operação oficial dos nossos sabotadores oficiais do Estado pode e deve se esquematizar assim: que são trabalhadores privilegiados os que fazem piadas nas costas dos trabalhadores industriais, desses trabalhadores industriais comuns que não cessamos de abordar.
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Existe ali, como em toda demagogia, uma quebra de confiança e interesse. Começam por animar nosso interesse, por atrair nossa confiança revolucionária sobre o movimento revolucionário industrial, e em seguida nos quebram essa confiança, e esse interesse em prol de um movimento estatista, em prol de uma promoção de funcionários autoritários que nada tem de industrial, nada de revolucionário; e não demandam nada além de se tornar-se mais funcionários, mais autoritários, mais Estado.
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Quem se propor a desossar um pouco a demagogia moderna, perceberá facilmente que a sabotagem está no coração dessa demagogia. No limite, a sabotagem não se torna outra coisa que o hervéismo⁷; e o parentesco e a complacência mútua que constatamos de fato entre todos os outros tipos de sabotagem e essa sabotagem eminente e limitada que é o hervéismo apenas manifesta, apenas representa de fato um profundo reconhecimento mútuo, uma profunda complacência mútua, o profundo parentesco de realidade entre sabotagens subsidiárias que reconhecem nele seu mestre e seu ancião, seu maximum e seu diretor, enfim, seu limite.
Seria de se espantar se, ao final dessa breve conversa, não tivéssemos encontrado o hervéismo. Ele está em todo lugar. Jamais demagogia alguma teve uma floração tão bonita. E ela imediatamente conquistou homens que teriam mantido a compostura ante demagogias precedentes.
Falarei apenas muito reservadamente do homem que está em Clairvaux⁸. Não falarei dele — como seu defensor disse, como seus defensores oficiais disseram, como ele mesmo admitiu — por um delito de opinião, mas por um crime de ação. Apenas falarei dele muito reservadamente. Mas não poderia deixar de falar dele voluntariamente quando ele está no caminho da nossa pesquisa, quando seu nome está em todos os discursos. Falarei dele por várias razões, que não poderia expor sem me aprofundar em seu caso. Falarei dele por várias razões, que não poderia dar sem me aprofundar em seu caso. Darei essas razões antecipadamente se puder um dia me aprofundar um pouco em seu caso. Uma dessas razões será que, enquanto prisioneiro, detento político, e não mais detentor de direito comum, ele tem toda a liberdade, toda a permissão para escrever, e, em suma, de agir, e da qual ele de fato não se priva. A razão essencial, a razão capital, seria que nós não temos o direito de infligir a ele essa pena capital adicional que seria essa espécie de decapitação...
1 Escrito provavelmente em 1906 (N. E.).
2 Ensaio de Péguy de 1904 sobre o problema da modernidade e do conhecimento.
3 N.T.: A expressão original é “de réserve”. No texto, ela parece carregar uma polissemia: se refere tanto ao caráter de isolamento dos povos (caso em que se poderia verter a expressão simplesmente por “reservado”), quanto à ideia de algo sobrante a ser utilizado conforme a necessidade, como na expressão marxista consagrada “exército de reserva” (“armée de réserve”).
4 O Arsenal de Brest é uma importante base militar da marinha francesa, localizada no porto de Brest, cidade na região da Bretanha.
5 NT.: Para preservar a assonância do original (“Usure, usage, utilité”), vertemos “usure” por “usura”. Mas à época de Péguy, o termo preserva, além do sentido de ganho indevido, o sentido de um desgaste ou deterioração de um bem resultante de um uso prolongado.
6 Pensador e sindicalista francês influenciado por Proudhon. Na provável época de escrita desse texto de Péguy, Lagardelle (1874 – 1958) compunha a sindical Confédération générale du travail (Confederação geral do trabalho). Aproximou-se progressivamente do fascismo após sua saída dessa instituição. Tornou-se membro do partido fascista francês Le Faisceau em 1926, chegando a ser Ministro do Trabalho do Regime de Vichy entre 1942 e 1943.
7 De Gustave Hervé (1871 – 1944), militante político francês. No provável momento de escrita desse texto de Péguy (1906), Hervé participava, como Lagardelle, da CGT. Inicialmente um socialista antimilitarista, Hervé converteu-se gradualmente em fascista após sair de seu período de encarceramento mais longo (2 anos), em 1912. O hervéismo, nos anos em que Péguy escreve esse texto, era uma doutrina que apontava para a possibilidade de uma insurreição militar em caso de guerra, posteriormente definido pelo próprio Hervé como um "pacifismo exasperado". Além de demagogia, Péguy definiria o hervéismo também em termos de uma doutrina de traição.
8 Clairvaux se refere à Abbaye de Clairvaux (Abadia de Claraval), um mosteiro do século XXII construído na comuna de Ville-sous-la-Ferté, na região do Grand Est francês. Após a Revolução de 1789, o mosteiro foi convertido em uma prisão. O homem em questão provavelmente ainda é Gustave Hervé, preso ali em função de uma acusação de « incitação ao assasinato e à desobediência militar » por colar um pasquim antimilitarista contra a guerra.